terça-feira, 17 de abril de 2012

Além das máscaras que Raul criou para os emissores de opiniões, há também as que cobrem a face de seus personagens-destinatários.

Primeira mensagem: para um operário cabisbaixo
Nesse bolero, Raul manda seu recado a um trabalhador, um operário cabisbaixo que ao voltar do trabalho carrega uma expressão triste, pesarosa. Reclama da vida, do marasmo de seu casamento, do salário, do tédio. O cantor, companheiro de boteco, dedica-lhe uma canção:

Você alguma vez se perguntou por quê
Faz sempre aquelas mesmas coisas sem gostar
Mas você faz, sem saber por que, você faz
E a vida é curta
Por que deixar que o mundo
Lhe acorrente os pés
Fingir que é normal estar insatisfeito
Será direito o que você faz com você
Por que você faz isso, por quê
Detesta o patrão no emprego
Sem ver que o patrão sempre esteve em você
E dorme com a esposa por quem já não sente amor
Será que é medo
Por quê? Você faz isso com você
Por que você não pára um pouco de fingir
E rasga esse uniforme que você não quer
Mas você não quer, prefere dormir e não ver
Por que você faz isso, por quê
[...]
(Raul Seixas. Você, O dia em que a Terra parou, 1978)

Segunda mensagem: para a morte
Trágico, o poeta consciente de sua efemeridade, imagina a morte. Quando ela virá? Será bela? Será boa? Será súbita ou lenta? Não, ele não a teme. É-lhe inevitável, ‘talvez o segredo dessa vida’, por quem ele clama: ‘vem, mas demore a chegar, eu te detesto e amo’. E vibrante, o poeta convida a morte para dançar um tango:

[...]
Vou te encontrar vestida de cetim
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
[...]
Oh morte, tu que és tão forte
Que matas o gato, o rato e o homem
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite
(Raul Seixas. Canto para a minha morte, Há dez mil anos atrás, 1976)

Terceira mensagem: para os que se ocupam em criar explicações ‘coerentes’ para a vida
“Esqueça”, diz o personagem de Raul, “nenhuma explicação poderá ser coerente com a vida”. E o problema, caros, não é humano, não é linguístico. O fato é que a vida, a vida mesmo, a vida real, ela não é nada coerente, não conhece formas nem conceitos, não se deixa calcular nem decifrar. O recado, nessa música, vai para os grandes teóricos da vida, os criadores de conceitos, os grandes metafísicos: religiosos, filósofos e cientistas.

Não me pergunte por quê
Quem, como, onde, qual, quando, o quê
Deus, Buda, o tudo, o nada, o ocaso, o cosmo
Como o cosmonauta busca o nado, o nada
Seja lá o que for, já é
Não me obrigue a comer
O seu escreveu não leu
Papai mordeu a cabeça
Do Dr. Sugismundo
Porque sem querer cantou de galo
Cada cabeça é um mundo Gismundo
Antes de ler o livro que o guru lhe deu
Você tem que escrever o seu
Chega um ponto que eu sinto que eu pressinto
Lá dentro, não do corpo, mas lá dentro-fora
No coração e no sol, no meu peito eu sinto
Na estrela, na testa, eu farejo em todo o universo
Que eu tô vivo
Que eu tô vivo
Que eu tô vivo, vivo, vivo como uma rocha
E eu não pergunto
Porque eu já sei que a vida não é uma resposta
E se eu aconteço aqui se deve ao fato de eu simplesmente ser
Se deve ao fato de eu simplesmente
Mas todo mundo explica
Explica, Freud, o padre explica
Krishnamurti tá vendendo a explicação na livraria, que lhe faz à prestação
E tem Platão que explica, que explica tudo tão bem, vai lá que
Todo mundo explica
Protestante, o auto-falante, o zen-budismo
Brahma, Skol, Capitalismo oculta um cofre de fá, fé, fi, finalismo
Hare Krishna dando a dica
Enquanto aquele papagaio curupaca e implica
Com o carimbo positivo da ciência que aprova e classifica
O que é que a ciência tem
Tem lápis de calcular
Que mais que a ciência tem
Borracha pra depois apagar
Você já foi ao espelho, nego
Não
Então vá
(Raul Seixas. Todo mundo explica, Mata virgem, 1978)

Mas alguém na plateia poderia se levantar e argumentar: o que é então a verdade, sr. mascarado, se todas as explicações não passam de meras explicações? A verdade, ele diria, é uma ilusão linguística: “[...] metáfora, metonímia e antropomorfismo, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias [...]”7. Ao sondar a verdade, ao tentar entender os motivos que levam o homem a criar essa construção “[...] tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, firme a ponto de não ser espedaçada pelo sopro de cada vento”8, fica evidente a habilidade humana em elaborar conceitos complexos. Porém, a verdade, esse “domo conceitual infinitamente complicado”, é linguagem humana e, como tal, não há mistério algum em, ao procurá-la “[...] no interior do distrito da razão”, ali encontrá-la9.

[...] Se forjo a definição de animal mamífero e em seguida declaro, depois de inspecionar um camelo: “Vejam, um animal mamífero”, com isso decerto uma verdade é trazida à luz, mas ela é de valor limitado, quero dizer, é cabalmente antropomórfica e não contém um único ponto que seja “verdadeiro em si”, efetivo e universalmente válido, sem levar em conta o homem. (Nietzsche, Sobre verdade e mentira, p. 50).

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