terça-feira, 24 de abril de 2012

les femmes savantes: sabichonas ou eruditas?

Em 1672 foi apresentada pela primeira vez em Paris a peça “Les femmes savantes” de Molière. Traduzindo o título ao pé da letra teríamos uma versão brasileira intitulada “As mulheres sábias”. Contudo, as traduções brasileiras conhecidas dessa obra não levaram o nome literal adiante. A primeira, feita por Jenny Klabin Segall na década de 1960, recebeu o título de “As sabichonas”; a segunda, de Millôr Fernandes, ficou sendo “As eruditas”. Creio que a mudança do nome em brasileiro seja adequada aos novos tempos... Na época de minha avó o termo de Segall talvez tivesse mais impacto... Lembro-me até que ela, minha avó, costumava usar o adjetivo para se referir, com humor e um leve traço de simpatia, às mulheres mais independentes e mandonas. “A sabichona da Rosilda já deu um jeito no marido. Agora ele não atrapalha mais nossos chás-da-cinco na terça feira, ficamos à vontade para colocar nossos assuntos em dia”. Optei nesse texto pelo termo “sabichona”. Por dois motivos: o primeiro, e mais importante, é que ele me faz lembrar minha avó, sua maneira de falar, seu vocabulário; o segundo, é que o termo soa mais literário que “erudita”.

Molière foi um influente dramaturgo francês do século XVII que ganhou destaque na produção, encenação e direção de comédias. Era um observador dos tipos e trejeitos humanos, elementos explorados com perspicácia em seus personagens. Entre tantos aspectos da sociedade francesa parodiados e satirizados por ele, o salão literário ganhou referências especiais... assim como suas damas...
A primeira dessas peças foi encenada em 1659 em Paris e recebeu o título de Précieuses ridicules (em brasileiro literal, “Preciosas ridículas”). Essa peça, que segundo Erich Auerbach fazia referência “a primeira e mais brilhante das “sabichonas”, a marquesa de Rambouillet”, teve tamanho impacto na sociedade francesa e descreveu tão ‘perfeitamente’ as reuniões íntimas dessas importantes madames que o termo précieuse tornou-se sinônimo de... sabichonas! (segundo o tradutor do texto José Paulo Paes), e era amplamente utilizado pelos frequentadores dessas reuniões para se referir ‘carinhosamente’ a suas anfitriãs. (p. 194-5)

 Catherine de Vivonne, a marquesa de Rambouillet, e sua filha Julie de Montausier.
Gravura de Roger-Viollet, século XVII.

Para acomodar o leitor ao costume da época, apresentarei algumas características dos tais salões literários: dizem que lá pairava uma intimidade elegante compartilhada por pessoas de nascimento diverso em pé de igualdade no que diz respeito à boa educação e ao nível moral, intelectual, estético e galanteador dos participantes. Segundo a historiadora Dominique Godineau, “o salão do século XVIII é um dos novos lugares de sociabilidade onde se encontram lado a lado nobres, burgueses ricos, letrados, homens de ciência de todas as nacionalidades”. Tais participantes, além disso, demonstravam um eloquente gosto pelo romance, o emprego exagerado de metáforas e um acentuado pedantismo na análise dos sentimentos.

São nomes que fizeram a história dos salões literários da França: madame de Rambouillet, já citada, madame d’Épinay, madame de Geoffrin, madame du Châtelet, mademoiselle de Lespinasse, madame du Deffand, madame Necker... Voltaire, d’Alembert, Diderot, Grimm, Buffon, Montesquieu, abade Galliani... etc, etc, etc.

Essa pintura de Anicet Charles Lemonnier, do século XIX, representa a leitura da tragédia "L'Orphelin de la Chine", de autoria de Voltaire, no salão de madame de Geoffrin em 1755. Estão retratados na imagem Diderot, Turgot, d'Alembert, Condillac e Voltaire (seu busto).

Enfim, o leitor deve estar ansioso para ir além das questões relativas à tradução do título e ao contexto histórico e adentrar o universo teatral de “Les femmes savantes”. Vamos à obra!

A sátira recai sobre as “mulheres da cultura”, as sabichonas que se encantavam pelo conhecimento filosófico e pela poesia ilustrada, eruditas que se tornavam referência na crítica da arte. Chamarei tais mulheres de femmes des lettres, expressão que não era usada na época. Na época, no entanto, era usado o termo hommes des lettres. Particularmente não vejo problema algum em se referir a homens e mulheres com o substantivo “homens”, afinal, nossa língua brasileira leva os nomes para o masculino quando o grupo é composto por indivíduos de sexos diferentes. Não tenho crise com expressões do tipo “um país se faz com homens e livros”, pois consigo compreender tranquilamente que o autor, no caso o ‘grande’ Monteiro Lobato, estava se referindo também às mulheres... Agora, já que falamos dos séculos XVII e XVIII, temos que fazer essa ressalva..., quanta diferença há entre “homens de letras” e “sabichonas”...

À peça, então.

A trama principal gira em torno de uma família burguesa bem posicionada na sociedade francesa. Os personagens são: Crisaldo, o patriarca; que é também marido de uma sabichona, a Filomena, que mantém um salão literário. Armanda, a filha mais velha, que entregou corpo e alma à filosofia. Acha o casamento um horror! É ela quem diz à irmã: “— A mim a palavra casamento só me traz visões imundas, submissões inúteis, contato repelente – não consigo entender você contente”. Henriqueta, a mais jovem, despreza o saber ilustrado e sonha com um marido a quem possa dedicar a alma, e também o corpo. “— E tem realização maior, pra alguém da minha idade, do que amar e ser amada, poder casar com o homem que deseja e construir com ele uma vida de compreensão e de felicidade”?

E assim começa a saga de Henriqueta para conseguir da mãe a aprovação de Cristóvão como seu marido. O caso é que Filomena já tem sua preferência. É Tremembó, um filósofo-poeta que frequenta suas reuniões e que, segundo crê, sensibilizaria sua filha para as coisas do espírito. Crisaldo e Aristides, seu irmão, apóiam Henriqueta em sua vontade; enquanto isso, a irmã, a mãe e Belisa, a tia, são partidárias fanáticas de Tremembó, por quem se derretem...
Aqui o leitor poderia pensar: — Então, tudo resolvido, se o pai da rapariga, o patriarca, apóia o casamento com Cristóvão, quem mais poderia impedi-lo? O fato é que, apesar de estarmos no século XVIII, nessa família quem costuma decidir os rumos da casa é ninguém mais ninguém menos que ela, Filomena.

Conversa vai, conversa vem, um impasse aqui, outro acolá, e quem acabou vencendo a disputa foi mesmo Henriqueta. Não que ela tenha convencido a mãe... foi o próprio Tremembó quem se mandou. Como? Por quê? O que fez o rapaz mudar de ideia? Pois bem, foi Aristides, o tio, quem lançou mão de uma artimanha infalível para convencer a sabichona e dar fim no pseudo poeta. Em presença do escrivão que deveria redigir o contrato de casamento, em meio a uma discussão entre os progenitores para decidir qual dos dois pretendentes seria o marido, Aristides aparece cabisbaixo trazendo duas cartas bombásticas. A primeira delas, para Filomena, anunciava que uma de suas disputas judiciais chegara ao fim... e ela havia perdido toda sua fortuna; a segunda, para Crisaldo, avisava sobre sua bancarrota. O desespero toma conta da família, o suor escorre do cabelo empetecado da grande dama, Crisaldo quase chora... Henriqueta e Armanda visualizam seu futuro pobre... Mas, passado o primeiro susto, logo Filomena vira de lado e proclama: “— Oh, mais que vexame! Que aflição indigna! Dar importância funesta a uma simples perda material! Para uma pessoa sábia o dinheiro não importa. Só dá importância a ele quem tem uma visão torta. Mas vamos com a cerimônia que a vida passa veloz. (Aponta Tremembó). Os bens que ele possui chegam bem pra todos nós”.
Mas eis que o poeta não concorda tanto assim com madame sabichona. Ligeiro, muda de ideia e dá no pé. Um breve silêncio toma conta da casa... e Cristóvão, timidamente, pede a palavra: “— Por mim eu gostaria de ser um pouco mais mercenário pois teria agora mais o que oferecer. Aceite porém, minha senhora, o pouco que eu tenho e rogo-lhe que não deixe que ninguém mais se intrometa no grande amor que devoto a Henriqueta”.
E Henriqueta, apaixonada, agora não quer mais se casar... Não deseja desgraçar a vida de seu ex-futuro marido dando-lhe uma família falida. O tio, percebendo o andar da carruagem, logo interrompe: “— [...] As notícias que eu trouxe não eram verdadeiras. Um estratagema, uma mentira que inventei para servir ao amor. Para mostrar a minha irmã a ambição que vivia debaixo da saia da filosofia”. Aliviados e felizes, dá-se assim o casamento.

Agora que o leitor já conhece os rumos dessa história, vamos a alguns trechos do texto teatral a fim de averiguar o tom da sátira de Molière. Seleciono trechos emblemáticos da fala dos personagens. A começar por Cristóvão.

Ele diz, entre outras pérolas: “— [...] Francamente, as mulheres eruditas não me agradam. Admito que uma mulher não seja só matrona, mas há um grande abismo entre uma dona sábia e uma sabichona. A sabedoria não faz nenhum mal desde que a mulher não esqueça o que é essencial. É bom que, algumas vezes, abandone o que sabe, seja simples no que diz, original no que faz, sem citar grandes nomes, sem tiradas pomposas, pois quem exibe cultura sem motivo, é motivo de riso”.

A seguir um diálogo entre Crisaldo, Belisa, sua irmã, e madame Filó. A sabichona acabara de demitir a cozinheira porque ela não fazia uso correto da norma culta. 
Começa Crisaldo: “— Pronto, ela foi despedida. E deu sumiço. Mas agora lhe digo: não aprovo nada disso. Uma moça boa e trabalhadora e você a despediu por motivo imbecil”.

Filomena: “— Que é que você queria? Que eu ficasse com ela me estropiando os ouvidos o dia todo, infringindo todas as regras do costume e da razão, com erros de sintaxe e vícios de oração, palavras deturpadas, mutiladas, errando todos os vocábulos e falando na sala expressões dos estábulos”?

Belisa: “— Você não, mas eu suo quando você a chama e, em vez de Senhor?, ela pergunta Inhô? Um verdadeiro escárnio ao grande Aureliô. E fala tanta besteira que já nem me causa pasmo um solecismo, uma cacofonia ou um pleonasmo”.

Crisaldo: “— Que me importa o nome do teu bisavô, que me importa a glória desse Aureliô, que me importa uma ciência senil e arbitrária se ela conhece as leis da culinária? A mim pouco me importa que quando está cozinhando, ela coloque mal concordância e regência, diga palavras grosseiras, solte palavrões e decline de forma errada: desde que não queime a minha carne assada. Me interessa mais a língua na panela do que na boca dela”.

Belisa: “— Na boca dela, oh”!

Filomena: “— Meu Deus, na boca dela”!

Crisaldo: “— Aureliô não ensina ninguém a fazer sopa. E esses teus literatos não sabem conjugar o mais simples dos pratos”.

Filomena: “— Eu me sinto envergonhada só de ouvir você gritar esse discurso estúpido! Que indignidade pra quem se diz um homem, só pensar todo o tempo em coisas materiais, sem se elevar um instante às preocupação dos espíritos. Será que o corpo, sujo e precário, merece de nós tanta atenção? Não será mais sábio esquecermos que existe, nos libertarmos de sua opressão”?

Crisaldo: “— Liberte-se você que o corpo teu é teu, mas deixa em paz o meu. Do meu, eu trato. Sujo e precário, o que você quiser, mas é o que se tem – e eu vou tratá-lo bem”.

Belisa: “— O corpo e o espírito são um conjunto só, meu caro irmão. Mas se o que os sábios dizem não é pilhéria, o espírito tem valor maior do que a matéria. Nossa preocupação é dar-lhe precedência e alimentá-lo bem com o suco da ciência”.

Crisaldo: “— Estou de acordo quanto à alimentação. Mas, com suco? Isso não! Devemos dar ao espírito refeição mais exata: um bom naco de carne, arroz, batata, para enfrentarmos precalços...”

Belisa: “— Precalços! Sim senhor”!

Crisaldo: “— Precalços ou percalços, a mim pouco me importa. Já estou cheio. Estou farto de ouvir vocês falando como se fossem as donas da cultura, quando aí fora o que dizem é que estão completamente loucas. Malucas, sim senhoras...”

Filomena: “— Como? Que teria a ousadia?...”

Crisaldo: “— (A Belisa) Falo mais a você, adorada irmãzinha. Fica toda irritada com o menor solecismo sem reparar que o seu comportamento é todo um barbarismo. Essa quantidade de livros em que vive mergulhada é uma montanha de lixo que não vale nada. Isto é: com exceção daquele Plutarco com capa de lona que eu uso para calçar o braço da poltrona. Você devia queimar toda essa porcaria, toda essa falsidade e deixar a ciência com os sábios de verdade. Quebrar ou botar fora a luneta imensa que está lá no sótão e as outras bugigangas com que vê não sei o quê. Esquecer um pouco o que se faz na lua e preocupar-se mais com a arrumação da casa, obrigação sua. Não é nada direito que uma mulher estude mil coisas irreais e descuide, na prática, das coisas mais banais. Orientar os filhos no caminho da vida, dirigir e comandar a criadagem, manter a casa limpa e arejada, gastar dinheiro com economia, taí uma filosofia. [...] Ah, como estão longe disso as madames de agora! Querem só escrever, citar autores, e a atividade do lar virou uma coisa indigna. E nesta casa, então, isso chegou à loucura total, pois aqui vocês sabem tudo, tudo, tudo, menos o fundamental. [...] O racionalismo aqui virou uma doutrina e, racionalizando, ninguém mais raciocina”.

Porém, nem todas as femmes des lettres dos séculos XVII/XVIII tinham ares independencionistas como o de Filomena. Lembremos que a obra de Molière é, antes de qualquer coisa, uma comédia, uma caricatura satírica de costumes de sua época. Segundo Godineau, madame Roland, por exemplo, uma proeminente madame de salão setecentista, não compartilhava com Filomena das ‘liberdades decisórias’ que essa personagem molièriana expressa. Diz a historiadora sobre madame Roland:

[...] Manon Roland não se considerava porta-voz ou representante do seu sexo. “Não creio que os nossos usos permitam ainda às mulheres mostrar-se abertamente, escrevia numa carta de abril de 1791; elas devem inspirar o bom, devem alimentar e encorajar todos os sentimentos úteis à pátria, mas não devem mostrar que contribuem para a ação pública. Só poderão agir abertamente quando todos os franceses tiverem merecido o nome de homens livres”. Ela própria assinava quase sempre com o nome do marido ou então deixava o texto anônimo. (p. 331)


Apenas como curiosidade histórica, madame Roland, apesar das críticas às feministas revolucionárias, não teve destino diferente do de suas contemporâneas: foi guilhotinada em novembro de 1793, cinco dias depois de Olympe de Gouges, a famosa! Segundo Godineau, apenas alguns dias depois da queda da cabeça de Manon Roland um panfleto popular chamado Folha da saúde pública publicou o seguinte recado aos “republicanos”:

A mulher de Roland, belo espírito animado por grandes projetos, um monstro segundo todos os pontos de vista, sacrificou a natureza, querendo elevar-se-lhe; o desejo de saber levou-a a esquecer-se das virtudes do seu sexo, e este esquecimento, sempre perigoso, acabou por fazê-la perecer no patíbulo. (p. 331)

Pois é, não foi apenas a fogueira religiosa que queimou bruxas. Os bravos e revolucionários burgueses franceses também deram fim a destacadas femmes des lettres...! Ainda que o episódio revolucionário tenha acontecido cento e vinte e um anos depois da primeira apresentação de “As eruditas”, ouso dizer que o imaginário social francês acerca dos papéis sexuais não havia então experimentado grandes revoluções... Tais revoluções só viriam a ocorrer na cultura ocidental em meados do século XX... cento e tanto anos depois da morte de madame Roland...


E para terminar, mais um trechinho das femmes savantes. A cena a seguir se passa entre Filomena, a sogra, Cristóvão e Tremembó. 
Quem começa é ela: “— [...] O senhor Cristóvão não lhe acharia interesse pois tudo que é ciência lhe causa repugnância: faz profissão de fé de apregoar a própria ignorância”.

Cristóvão: “— O que a senhora afirmou merece atenuantes, não sou contra os sábios, sou só contra os pedantes. Não combato a ciência, combato a impertinência que se faz passar por ciência. Não sou contra a leitura mas contra quem arrota uma falsa cultura”.
Tremembó: “— Por mim eu gostaria de saber de que maneira o senhor distingue uma cultura falsa de uma verdadeira”.

Cristóvão: “— A falsa cultura a gente logo nota: é só olhar bem pra cara do idiota”.


Referências bibliográficas:
Auerbach, Erich. Introdução aos estudos literários. Trad. José Paulo Paes. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1972.
Godineau, Dominique. “A mulher”. In: Vovelle, Michel. (Org.) O Homem do Iluminismo. Trad. Maria Georgina Segurado. Lisboa: Editorial Presença. 1997, p. 311-334.
Molière. As eruditas. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: LP&M, 2008.

Um comentário:

  1. Anônimo28/4/12

    Muito interessante a crítica que o autor, Molière, realizou sobre o extremo do racionalismo, a doutrina. Ao fim da peça prevaleceu a paixão e o irracionalismo nomeado por Felomena e Crisaldo, seu marido, cansou de jantar "sopa de letrinhas":

    "Querem só escrever, citar autores, e a atividade do lar virou uma coisa indigna. E nesta casa, então, isso chegou à loucura total, pois aqui vocês sabem tudo, tudo, tudo, menos o fundamental."

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quem ouve? quem houve?

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