terça-feira, 17 de abril de 2012

Os personagens de Raul Seixas


Eu nunca cometo pequenos erros
Enquanto eu posso causar terremotos
E das tempestades já não tenho medo
Acordo mais cedo
Eu nunca me animo de ir ao trabalho
Eu sou o curinga de todo baralho
[...]
(Raul Seixas. Moleque maravilhoso, Gita, 1974.)

Raul Seixas: uma metamorfose ambulante, ator da vida, o curinga do baralho. Poeta mascarado. Bobo da corte que, como tal, tem condições de ridicularizar o próprio rei sem por isso ser punido. Criador de mundos, o carpinteiro do universo, inventor da cidade de cabeça pra baixo, autor do ei-ei-ei realista. Facetas.
Uma vida, muitas histórias. Como cantor, Raul consegue se inserir no cotidiano sonoro de pais, mães e filhos e, de lá, manda seu recado. À sua maneira, fala de coisas sérias e bastante incisivas sobre as práticas culturais daqueles que o escutam, contudo, consegue não pesar (muito) o ambiente.
Do final da década de 60 ao final da década de 80 e além, a música de Raul povoa o imaginário de muitas famílias brasileiras. Às vezes irônico, às vezes realista, erótico, trágico, cômico, profético, contestador, Raul compõem múltiplas estéticas e obtém múltiplas escutas. Seus personagens alcançam pessoas das mais variadas idades, dos mais variados gostos, dos mais variados tipos. Mas, será Raul Seixas a soma de seus personagens? Para essa pergunta, imagino, há tantas respostas quanto as que se quiser dar. Por isso, ouso dar a minha opinião que, reconheço, não é solitária: Raul Seixas não é a soma de seus personagens. Sua obra não cabe no tamanho de sua pessoa, ela transborda, se expande, ou como diz em Senhora Dona Persona: “[...] os homens passam e as músicas ficam”.
Certo filósofo alemão diria o seguinte:

“[...] o melhor é certamente separar o artista da obra, a ponto de não tomá-lo tão seriamente como a obra. Afinal, ele é apenas a precondição para a obra, o útero, o chão, o esterco e adubo no qual e do qual ela cresce — e assim, na maioria dos casos algo que é preciso esquecer, querendo-se desfrutar a obra mesma.” (Nietzsche, Genealogia da Moral, [4, III], p. 90).

Nesse trecho, ao afirmar ser melhor separar o artista da obra, Nietzsche apresenta também sua opinião em relação à interpretação da arte. E diz que, se se quiser apreciar uma obra de arte por ela mesma, deve-se esquecer o autor, deve-se evitar a ‘contiguidade psicológica’ entre artista e obra. O artista não é o que representa. “[...] Na verdade, se ele o fosse, não o poderia representar, conceber, exprimir; um Homero não teria criado um Aquiles, um Goethe não teria criado um Fausto, se Homero tivesse sido um Aquiles, e Goethe um Fausto.”1
Não gostaria de falar, portanto, da história de vida de Raul, de sua biografia, gostaria de focalizar apenas sua música, aumentar o volume da sua voz para que ela possa ressoar na imensidão do espaço e percorrer universos de ondas sonoras.

Os personagens de Raul Seixas

De Deus a Judas, de mensageiro do Diabo a filho do Sol, de anarquista libertário a egoísta, de jovem contestador a aposentado indignado...2 a cada música um personagem, um ponto de vista, uma perspectiva da vida; a cada música um ouvinte, um destinatário: o operário , a prostituta, o jovem conformado, a ‘indesejada das gentes’, a esposa, o hippie, os teóricos da vida3. Eis algumas das máscaras de um bobo da corte que nasceu para ser ator, embora fingisse ser cantor e compositor:

Eu costumo dizer que eu sou um tão bom ator que eu finjo que sou compositor e cantor e todo mundo vai na onda [...].
(Raul Seixas entrevistado por Marília Gabriela, You Tube, 1983)

Pois nessa vívida carreira de ator, Raul veste-se de figuras cotidianas, fala de acontecimentos triviais, de dúvidas corriqueiras, de angústias existenciais, de emoções arrebatadoras. Trocando continuamente suas máscaras, traz para suas músicas os dramas da vida e ensina o ouvinte a “estimar o herói escondido em todos os seres cotidianos”, bem como a “arte de olhar a si mesmo como herói, à distância e como que simplificado e transfigurado”4. Raul encena, em seu fabuloso palco musical, o teatro da vida.

Um baile de máscaras

Primeira máscara: Deus

Alô, aqui é do céu
Quem tá na linha é Deus
Tô vendo tudo esquisito
O que que há com vocês
Por favor, não deixem a peteca cair
Que o diabo diz que vai baixar de uma vez por aí
Eu fiz vocês como eu
Imagem e perfeição
E vocês anarquizando
A minha reputação
Não é só novena, terço e oração
Em vez de resmungar eu quero é ver
Vocês em ação
Vocês em ação
Foram milhões de anos dedicado a vocês
Fazendo vossas cabeças, não fui eu quem marquei
[...]
(Raul Seixas. DDI, Raul Seixas, 1983)

Numa levada ‘rock progressivo’, Raul ataca em tom profético. Nessa música entra em cena Deus, um Deus moderno que usa o telefone para falar com suas criaturas em fábula intitulada D.D.I. (Discagem Direta Inter-estelar).
Indignado com os rumos da humanidade, o soberano resolve entrar em contato com seus homens por meio desse sofisticado meio de comunicação. Avisa-os dos riscos que correm caso deixem a ‘peteca cair’, caso deixem seu nome sujo na praça, caso continuem ‘anarquizando sua reputação’. E alerta: “não adianta ficar rezando, falando, reclamando, é preciso fazer alguma coisa, é preciso uma atitude. Se o diabo baixar de uma vez por aí, se o mal acontecer, vocês já estão sabendo, a responsabilidade não é minha. Além do que, se alguém ligar para vocês dizendo ser eu, pode ser um trote do Diabo que já desceu”. E então, para finalizar a música, uma voz sombria ao fundo diz: “Eu já estou aqui.”

Segunda máscara: Judas
Lançado em 1978, o Judas de Raul reivindica o direito de contar sua versão da história, daquela famosa história da traição de Cristo, de onde ele, o discípulo escolhido, saiu amaldiçoado, responsabilizado pela ‘marca sagrada da cruz’ que pesa sobre a cristandade ao longo de todos esses séculos. O caso curioso é que, nesse mesmo ano, apenas alguns meses antes do lançamento de Mata Virgem, foi descoberto, nas areias do deserto de El Minya, no Egito, um manuscrito encadernado em couro, datado do século III que, traduzido para o português, chamou-se O Evangelho de Judas5. Teria Raul se inspirado nesse acontecimento?
No vídeo clipe da música, veiculado na época pelo Fantástico, Rede Globo, Raul interpreta Judas. Vestido com uma túnica branca à moda dos pastores de rebanhos, carrega por cima um manto vermelho. Caminhando sem direção pelo deserto, leva também uma corda e um saquinho com moedas. Ao longo do percurso, canta:

Parte de um plano secreto
Amigo fiel de Jesus
Eu fui escolhido por ele
Para pregá-lo na cruz
Cristo morreu como um homem
Um mártir da salvação
Deixando para mim seu amigo
O sinal da traição.
[...]
Se eu não o tivesse traído
Morreria cercado de luz
E o mundo hoje então não teria
A marca sagrada da cruz
E para provar que me amava
Pediu outro gesto de amor
Pediu que o traísse com um beijo
Que minha boca então marcou.
[...]
(Raul Seixas. Judas, Mata virgem, 1978)

Terceira máscara: Mensageiro do Diabo
Rock n’roll da pesada, com direito a trio de metais e órgão, o Rock do Diabo também virou vídeo clipe. Raul, de vermelho, se coloca a frente da banda. Mais ao fundo é projetada uma tela ampliada do Salvador Dalí: Mercado de escravos com o busto desaparecido de Voltaire. Uma imagem surrealista que surge no cenário e subliminarmente sugere a ligação dos escravos africanos com o rock. 

Diabo
O diabo usa capote
É rock! É toque! É forte
Diabo
Foi ele mesmo que
Me deu os toques
Enquanto Freud
Explica as coisas
O diabo fica dando os toques
Existem dois diabos
Só que um parou na pista
Um deles é o do toque
O outro é aquele do exorcista
[...]
(Raul Seixas. Rock do Diabo, Novo Aeon, 1975)

O personagem-narrador coloca-se como mensageiro do Diabo, aquele que passa adiante ‘os toques’ do pai do rock. Todavia, anuncia que há um cuidado a ser tomado: ‘existem dois diabos’. Os que procuram pelo pai do rock devem saber diferenciá-lo ‘daquele que parou na pista’. Esse segundo, o ‘do exorcista’, é também o que normalmente figura nas explicações psicológicas, pois é sabido que, o que alguns chamam de loucura, outros chamam de possessão. 

Quarta máscara: anarquista libertário
Anarquista, o personagem-narrador de A maçã endereça seu discurso à sua mulher. Em coral com Émile Armand e Errico Malatesta, por exemplo, o marido tenta evitar a cristalização dos sentimentos sugerindo a liberdade sexual. Para ele, a monogamia ‘profana o amor de todos os mortais’ ao barrar o livre fluir do desejo. O amor, acredita, deve circular entre outras pessoas para não se gastar, para não se empobrecer. Para ele, o amor deve ser livre.

[...]
Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais
Se eu te amo e tu me amas
E outro vem quando tu chamas
Como poderei te condenar
Infinita tua beleza
Como podes ficar presa
Que nem santa num altar
[...]
(Raul Seixas. A maçã, Novo Aeon, 1975)

A liberdade dá longevidade ao amor. Tal como manifesto por Malatesta no texto “Amor e anarquia”, do livro Socialismo e anarquia, o personagem deseja que os “homens e mulheres possam amar-se e unir-se livremente apenas por amor, sem nenhuma violência legal, econômica ou física6.
Mas, continua Malatesta,

[...] a liberdade, mesmo sendo a única solução que podemos e devemos oferecer, não resolve radicalmente o problema, pois o amor, para satisfazer-se, tem necessidade de duas liberdades que concordam e que frequentemente discordam; e deve-se levar em conta que a liberdade de fazer o que se quer é uma frase desprovida de sentido quando não se sabe o que se querer. (Malatesta, Amor e anarquia)

Esse descompasso de duas liberdades, esse recorrente dilema que gravita entre o domínio da alma e do corpo de outrem e a liberdade dos sentimentos é vivenciada também pelo personagem de Raul Seixas. Ele diz: 

[...]
Quando eu te escolhi
Para morar junto de mim
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi que além de dois existem mais
Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te libertar
O que é que eu quero
Se eu te privo
Do que eu mais venero
Que é a beleza de deitar
(Raul Seixas. A maçã, Novo Aeon, 1975)

Quinta máscara: aposentado indignado
Essa é a voz de um cidadão aposentado que, desde a juventude, veio tropeçando nos modelos pré-estabelecidos de vida. Desconfiava dos costumes aceitos e até estimulados pelo seu ambiente cultural. Quando jovem, planejava se comunicar com ‘seres vindo do espaço’, porém, antes mesmo que a empreitada fosse realizada, sua garota lhe deu a seguinte notícia: ‘você vai ver tudo no cinema’. Indignado, o homem argumenta: ‘e onde está a vida?’, ‘cadê a experiência?’, ‘querem trocar minha vivência em nome da ciência?’, ‘e a minha independência?’.
E eis que a vida passa e o homem medita a respeito de sua história:

Durante a vida inteira eu trabalhei pra me aposentar
Paguei seguro de vida para morrer sem me aporrinhar
Depois de tanto esforço patrão me deu caneta de ouro
Dizendo enfia no bolso e vá se virar
Tá na hora da velhice
Tá na hora de deitar
Tá na hora da cadeira de balanço, do pijama, do remédio pra tomar
Oh! Divina providência (ência)
E a minha independência
Ah! E minha vida
E minha vida! Onde é que está
(Raul Seixas. Tá na hora, Mata virgem, 1978)

3 comentários:

  1. Anônimo13/8/14

    Parabéns pelo post.
    Adorei!
    Salve Raulzito!!

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  2. Eu queria indentificar os personagem e otimo parabens

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  3. Muito a interpretação e o texto,legal.

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quem ouve? quem houve?

quem ouve? quem houve?