segunda-feira, 30 de abril de 2012

A história das ideias na "Árvore mágica" de Peter Sloterdijk

O texto que se segue foi publicado nos Anais do IV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina, realizado em 2010. No entanto, há um mistério que o ronda: não é possível encontrá-lo em qualquer site na internet, não existe link para os textos dos Anais, nenhuma pista... Por isso resolvi publicizá-lo publicando-o aqui.

De lá para cá revi algumas afirmações que fiz, porém, por hora, não farei qualquer alteração ou correção do texto. Aguardo comentários ou críticas que apontem tais imprecisões... De outra maneira não considero necessário fazer qualquer reforma.

EXERCÍCIO NARRATIVO: AS PRIMEIRAS CENAS DE VIAGEM
A árvore mágica não é um romance histórico, é uma história da filosofia, uma ficção histórica ambientada no ano de 1785. A maior parte da narrativa passa-se na França, embora o protagonista, Jan van Leyden, tenha iniciado seu percurso na Áustria, sua terra natal. 

Recém formado em medicina pela Faculdade de Viena, enfrentando a aspereza do início de uma carreira profissional, encarando as dificuldades de um burguês típico daquela época, naquelas paragens germânicas, Jan seguia sua vida sem grandes emoções. Tal como Werther1, transitava pela cultura erudita germânica, era um nobre em seus costumes, porém, socialmente, não passava de um burguês. Desde que lera O sofrimento do jovem Werther vinha se sentindo meio sufocado, com a sensação de que seu mundo não cabia mais em si, em Viena, na Academia. Periodicamente relia trechos das cartas do jovem burguês de Goethe como uma espécie de amuleto sagrado, não queria jamais se acostumar àquela vida, não podia esquecer seus planos, não devia ficar. Nas noites em que se encontrava com Silberstein, seu velho amigo, costumava declamar os trechos memorizados:

Queria retirar-me e, contudo, fiquei, com a curiosidade de examinar tudo aquilo com mais miudeza. Entretanto o resto da companhia chegou. [...] Falei com algumas destas personagens que eu conhecia, que me responderam em termos mui lacônicos. [...] Não percebi que as mulheres falavam ao ouvido umas com outras no fim da sala; que isto circulava entre os homnes, que Madame de S. falava com o Conde com ânsia (Mademoiselle de B. me disse tudo isto depois); até que finalmente o Conde veio ao pé de mim e conduziu-me para uma janela: Vós conheceis, me disse ele, nossos ridículos usos; tenho reparado que a companhia estranha ver-vos aqui [...]. (Goethe, O sofrimento do jovem Werther, p. 101-102).

Precisava sair, respirar novos ares, conhecer outros modos de vida, ver outras gentes. Não podia imaginar sua vida como a de Werther, inferiorizada devido a posições sociais, precisava criar alternativas, não queria experimentar o mesmo fim do personagem. Conforme o tempo passava, sentia o peso daquela vida maçante em suas costas. Imaginava que na França as diferenças de classe já não eram tão rígidas. Ainda que os costumes da nobreza prevalecessem sobre a burguesia, a discriminação classista estava mais suavizada. Durante anos, Jan sonhava com Paris. Tarde da noite, quando não conseguia dormir, imaginava-se em salões de festas e soirées francesas.
Até que um episódio incomum transformou seu destino.
Estamos em maio de 1785. O magnetizador italiano Balsamo Scaferlatti, o conde de Cagliostro2, se encontra em Viena para mais uma de suas sessões magnéticas. A séance reúne a nobre sociedade vienense e alguns ilustres burgueses em casa do falecido barão Von Rosenkotz. Van Leyden e Silberstein estão entre os convivas. Cético, Jan se posiciona à margem do grupo e, como mero espectador, procura observar o comportamento das damas da sociedade e analisar o semblante dos senhores presentes enquanto aguarda a entrada triunfal de Scaferlatti. E eis que o mago surge no meio do salão. Jan sente a energia que chega junto com ele, o calor toma conta do ambiente, os homens começam a transpirar, as mulheres tornam-se ofegantes e trêmulas, algumas deixam escapar gritos dissonantes, outras estão prestes a desmaiar, madame de Morawitzky fica extremamente pálida. Até que Scaferlatti levanta o dedo indicador direito acima de sua cabeça e, com esse gesto, capta todos os olhares presentes. (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 27-9). Faz-se silêncio, todos estão magnetizados. Scaferlatti toma a palavra:

Quando sonhamos que sonhamos é porque estamos próximos do despertar. Sonhadores intranquilos é o que são — já não dormem profundamente, mas tampouco ainda despertaram. O mundo dos espíritos ainda está fechado para vocês, ainda precisam de um intérprete para poder falar com os espíritos que nos rodeiam em todos os instantes de nossas vidas. Eles estão tão perto de nós que nem chegamos a distingui-los, porque jamais vemos aquilo que nos está mais próximo. Por isto, cegos e surdos como estão, precisam de ajuda para fazer com que os invisíveis falem... Os espíritos nos rodeiam por todos os lados, vivem dentro de nós, ao nosso lado e atrás de nós. Muitas gerações de acompanhantes sutis nos segredam aos ouvidos, destruidores alguns, mas também outros amáveis, alguns espíritos dos mortos e outros daqueles ainda não nascidos...
[...] Nada pode ser mais urgente agora que aprender a conversar com os espíritos. Talvez me seja dado ensinar-lhes a que se comuniquem com as forças da face oculta da lua e a que decifrem as mensagens secretas dos espíritos... (Idem, p. 29-30).

Terminada a sessão, Jan sente-se diferente. Aquela intensidade energética tocara sua alma, sente que é chegada a hora de uma mudança mais drástica. Sim, pensa ele, quero conhecer o lado oculto da lua, quero encontrar esse misterioso medicamento espiritual, a cura para os males da alma. (Idem, p. 30). No mês seguinte, Jan já está na estrada. Conseguira uma bolsa de estudos para a viagem e boas recomendações dos maçons de Viena aos confrades franceses. Passa por Munique, não se sabe por que, e segue para Estrasburgo, onde a Sociedade da Harmonia Universal mantém uma filial3. Naquela cidade, procura por LeBrasseur, um antigo professor de medicina, “[...] excêntrico exemplar de médico paracélsico, para o qual a medicina não podia ser separada de considerações sobre as analogias entre o macrocosmos e o microcosmos.” (Idem, p. 33). Um pesquisador sagaz, entusiasmado com sua grande descoberta científica, a igualdade óssea dos homens, acredita que a Ciência informará o povo a respeito de seus direitos, mostrará ao pobre seus verdadeiros aliados.

[...] Hoje em dia vemos sobretudo duas coisas que geram injustiça e apatia: o berço e a posse. Lutar contra a primeira atualmente já não é impossível. A pantomima dos grandes senhores há tempo perdeu seu significado [...]. Empreender algo contra a grande fortuna já será um pouco mais difícil, caro colega, mas para nós esta é uma “cura posterior”! (Idem, p. 41)

LeBrasseur apresenta a Jan seu laboratório, onde existem dezenas de frascos contendo partes do corpo humano: corações, pulmões, intestinos. Porém, o professor chama a atenção do jovem médico para um órgão, “um órgão especial”, diz ele: o útero. Aparentemente um órgão sem importância, ressalta o antigo médico, o útero é “volúvel e caprichoso”, age “[...] como se tivesse consciência de ser mais importante do que os outros”, é uma “copuladora mística”, lugar que “une o espírito à matéria”, um mistério para a medicina setecentista. (Idem, p. 34-5).
É nesse cenário, quando a viagem de Jan mal havia começado, que ele sente os primeiros indícios da transformação que se opera em seu interior. Vê seus pensamentos embaralhados, confusos, como se não lembrasse mais nada do que aprendera em Viena, como se todo o universo científico ruísse em torno dele, como se todas aquelas explicações a respeito da vida perdessem o sentido.

[...] Ele sentia como se alguém tivesse plantado em sua cabeça um cérebro estranho com um sistema de imagens e combinações de pensamentos deslumbrantes. Sentia como em seu interior se abria um espaço para este cérebro estranho [...]. (Idem, p. 40).

Com todas essas sensações inexplicáveis, Jan começa a esquecer-se de si mesmo e percebe que há em seu íntimo algo inteiramente novo, algo que não se conecta com o passado, que se faz presente sem que se possa nomear de onde vem, uma ruptura. Não sente mais o chão sob os pés, deseja desesperadamente encontrar um local inacessível ao pensamento, esse pensamento persecutório e incessante que decidira montar guarda em sua mente. — Quem sou eu? O que me explica? Quais são as marcas da cultura que levo marcadas em minha pele? Um animal selvagem domesticado, uma fera que vive em rebanho. Sou um despropósito para a natureza. Maldita cultura, maldita moral. — Sua cabeça gira, suas mãos tremem, sente arder-se em febre. Vê flashes dos momentos vertiginosos que passou com LeBrasseur no topo daquela torre. Conforme os pensamentos cruzam sua mente como relâmpagos, Jan escuta as badaladas estourando em seus ouvidos. E lembra-se das palavras do professor:

Você precisa tomar cuidado. “[...] Irão lhe explicar que essas torres são símbolos do temor a Deus de nossos ancestrais, que são monumentos que simbolizam a mais profunda submissão dos homens ante o Absoluto e, símbolos duradouros da entrega da vontade humana nas mãos da Divina Providência.”
[...]
Irão lhe dizer muitas coisas e você “[...] terá que se decidir se irá querer acreditar em nossas doutrinas inspiradas na teologia das torres ou se irá preferir confiar em seus olhos, que veem uma coisa completamente diferente daquilo que dizem seus ouvidos. (Idem, p. 48).

As badaladas ficam cada vez mais altas, sua cabeça pulsa, a incessante voz do professor: “[...] Enquanto se fala da impotência, verá nessas torres a mais terrível ânsia pelo poder [...]”; “[...] Enquanto com belas palavras se fazem os mais humildes votos de obediência e de entrega, verá a vontade rebelar-se da maneira mais ardorosa.” (Idem, p. 48-9). — O que ele quis dizer com ‘colocamos a faca na garganta do velho Deus para depois ocuparmos seu lugar?’ Há muito esse Deus de meus ancestrais morreu, mas nunca me senti tão responsável pela sua morte quanto agora. Eu sou o animal mais maldito sobre a face da Terra, sou responsável por esse caos que aí está. E o caos parece que está somente em mim. — Jan passa o cair da tarde e toda noite perseguido por esses pensamentos.

No dia seguinte sente-se mais calmo e consegue pensar melhor sobre a ‘Psicologia das alturas’. Segundo LeBrasseur, no futuro será essa psicologia que dará eficácia à medicina, pois será necessário aos médicos curar os homens modernos da doença que eles se tornarão. O homem, tendo se colocado tão superior à natureza, sentirá vertigens ao olhar para baixo. (Idem, p. 49-50). Caberá ao ‘psicólogo das alturas’ trazer esses homens de volta para o chão, pois

[...] Quem constrói obras que alcançam tamanha altura só poderá ter problemas no chão. Quem sobe tão alto, sentirá que a maldosa Mãe-Terra se abrirá sob seus pés como abismo assustador. Sintomas de altura, nada mais são que sintomas de altura e apenas com isto teremos que lidar. A nova arte precisa resgatar o cidadão refugiado nas alturas e deformado pela cultura de seu torpor de vitória, para depois colocá-lo numa natureza enriquecida e novamente amiga. Para poder fazer frente ao mal das alturas é preciso que cavemos poços em sua existência física. (Idem, p. 49).

Sim, como uma toupeira, escavar os edifícios do Eu, procurar libertar a alma humana da prisão moral, do estranho e absurdo amestramento a que foi submetida, abrir suas comportas para o que lhe resta de natural, selvagem e indomável. Des-civilizar o Eu,

[...] Uma máquina complicada e melancólica, tesa, violenta e frágil, um autômato hipocondríaco que entra em pânico quando algo se agita amedrontadoramente em seu corpo e quando, apesar de tudo, a vida continua a pulsar e a vibrar... (Idem, p. 50).

Na hora do almoço, LeBrasseur fala sobre a comunidade médica de Estrasburgo e a ironiza, afirmando se tratar mais de uma ‘ordem monástica’ ou uma ‘seita secreta’ do que uma ‘organização profissional’. Conta-lhe acerca dos eventos realizados no passado pelos mesmerianos da Alsácia que, mais tarde, uniram-se aos confrades de Estrasburgo formando a Sociedade da Harmonia Universal. — “[...] haviam reunido a melhor parte da nobreza alsaciana, juntamente com a burguesia progressiva, visando superar as forças desarmônicas que inibiam tanto a vida moral do país, quanto prejudicavam o bem-estar físico do indivíduo.” (Idem, p. 53). O ser humano, embora pareça, não está isolado do resto da Existência. Ele é penetrado por um fluido universal, um fluido que penetra a todos os seres animados e inaminados, um fluido energético. Saúde e liberdade são, portanto, dois lados de mesma moeda. Obviamente, meu caro, tenha cuidado com a liberdade, em nome dela muitas pessoas morrerão. As árvores da liberdade e da guilhotina crescem juntas...
Enfim, voltemos ao assunto. Que tal se voltássemos àquela conversa iniciada ontem, sobre natureza e cultura? — Jan fica tenso, mas antes que consiga responder à pergunta, o professor dá continuidade à conversa. — Lembra que falamos a respeito do homem colocar-se acima da natureza e tornar-se um ser artificial? Esse é o homem civilizado, o homem doente. O distanciamento da natureza, a aquisição de regras morais, a submissão a costumes tão artificiais formaram no hipocôndrio humano uma represa à livre passagem do fluido. Essa contenção, esse aprisionamento de energias é a própria doença. A arte do magnetizador, meu jovem, consiste em abrir as comportas da represa da alma, desmagnetizar o hipocôndrio, deixá-lo fluir. (Idem, p. 53).

[...] Nunca observou quão poucas pessoas em nossa sociedade ainda são capazes de rir, ou de gritar, ou de soluçar a pleno pulmão? Responsáveis por esta incapacidade seriam as instituições que provocam a estagnação do fluido. Em outras palavras, seria a moderna educação artificial, que reprime tudo aquilo que procura emergir buscando a luz [...]. (Idem, p. 53).

Para concluir a conversa, LeBrasseur comunica Jan que precisará viajar a um castelo vizinho pois um confrade adoecera repentinamente e precisava de seus serviços. Aconselha-o a seguir a estrada até Paris. Pede-lhe para ficar atento aos rumores acadêmicos a fim de perceber se os dias de Mesmer na capital estão mesmo contados. Admite que desde seu sumiço repentino a Sociedade de Paris anda fora de controle e a repercussão disso torna-a cada dia mais desagradável aos confrades de outras regiões. Diz-lhe também para seguir viagem e ir a Soissons, a nordeste da capital, onde deverá procurar por Armand-Marie-Jacques de Chastenet, o marquês de Puységur. O aristocrata, diz ele, pratica atualmente uma forma totalmente nova de terapia: o sono artificial, e mantém muito boas relações com a Sociedade de Estrasburgo. (Idem, p. 54).

[...] Não são poucas as mentes lúcidas que veem nele o único herdeiro legítimo da missão magnética. Ainda que os senhores Bergasse, Carra, Deslon e Brissot disputem nos folhetins parisienses tentando obter as melhores peças da herança de Mesmer... (Idem, p. 54).

Despedem-se. Le Brasseur retira-se para o campo e Van Leyden para a biblioteca. Já que terá de esperar uma diligência que partirá para Verdun dentro de alguns dias, pensa em aproveitar o tempo preparando-se intelectualmente para os próximos encontros. Sente-se ainda muito estranho, frágil até: deixara de ser senhor de seus pensamentos e agora permanecia à deriva deles, era um indigente.

EXERCÍCIO EXPLICATIVO DAS PRIMEIRAS CENAS DE VIAGEM
Como contar a história de um romance desconhecido do público? Sim, porque falar de Capitu e Bentinho para intelectuais brasileiros contemporâneos requer um nível mais superficial de detalhamento da história, visto que, em tese, todos eles conhecem esses personagens machadianos que figuram no romance Dom Casmurro. Filmes, músicas, documentários, diversos comentários e análises já foram feitos a respeito desse livro que, sem dúvida, marcou época. Sem contar que durante anos tal livro foi leitura requerida aos alunos do Ensino Médio que desejassem cursar uma graduação. De fato, Capitu povoa as ideias de literatos e cientistas humanos brasileiros, tal como a Tieta de Jorge Amado, Policarpo Quaresma de Lima Barreto e outros tantos personagens da literatura geral, como Sherlock Holmes, Mrs. Dalloway, Madame Bovary e Fausto. Porém, o livro em questão, A árvore mágica, não é um sucesso de público. Não muitas pessoas ouviram falar dele e poucas o leram. O livro, escrito em 1985, foi publicado em 1988 no Brasil por uma editora pouco conhecida (Casa Maria Editorial; Livros Técnicos e Científicos) do Rio de Janeiro que, se atualmente está na ativa, não se modernizou ao ponto de manter um site na internet. Sem distribuição e divulgação, recheado de ideias filosóficas, o livro não é realmente um exemplo de sedução para o grande público. Também não circula muito entre os acadêmicos. Nos mecanismos de busca na internet, por exemplo, encontrei poucos blogs que apresentam comentários e resenhas do livro e de dois a três livros que dedicam um capítulo ou parte de um capítulo à análise d'A árvore mágica.
Então, como contar essa história sem perder a poesia que nela vive? O texto apresentado sob o título de Primeiras Cenas de Viagem não passa, portanto, de um ensaio, uma tentativa de leitura do romance do filósofo alemão. Uma experimentação que intenciona evitar as profundas deformações narrativas que geralmente os textos acadêmicos provocam nos textos literários. No ensaio desfilam os assuntos histórico-filósofos tratados pelo autor desde o “Prólogo” até o capítulo 4: “Da república místico-elétrica e sobre os quadris azuis das taitianas”, bem como referências intertextuais que visam o enriquecimento da ambientação histórica do personagem. Refere-se, portanto, apenas à primeira etapa de viagem do protagonista, abarca apenas o período em este esteve em contato direto com seu primeiro mestre: LeBrasseur.
Por narrar uma história das ideias, A árvore mágica é uma interpretação do ‘espírito’ filosófico de fins do século XVIII, mais especificamente, de uma mentalidade erudita que envolvia o intercâmbio de ideias filosóficas germânicas e francesas: uma filosofia da psicologia. O subtítulo da obra: “O surgimento da psicanálise no ano de 1785. Tentativa épica com relação à filosofia da psicologia” dá indícios a respeito da opinião do autor sobre a história da psicanálise. Para ele, ela não surgiu a partir da teoria de Freud, tem uma história anterior, percorreu diversos caminhos até chegar nesse formato canônico proposto e assinado pelo vienense do século XIX. Sloterdijk dá, portanto, um passo de volta na história da psicanálise e traz à tona o diálogo filosófico a respeito da cura dos males da alma travado desde cerca de 100 anos antes da viagem de Sigmund à França, em 1885. Dessa maneira, o autor apresenta sua leitura sobre a mentalidade intelectual a que Freud estava inserido, traz para o texto as referências literárias e ideias filosóficas predominantes nos círculos eruditos europeus nos séculos XVIII e XIX, tal como o empirismo, materialismo, espiritualismo, racionalismo, magnetismo animal e tantos outros sistemas explicativos da vida que por certo transitaram pela mente científica de Freud.
E como Sloterdijk faz isso? Ele corporifica os ‘encontros’ literários e historiográficos de Freud em Jan Van Leyden, o protagonista do romance. O personagem é testemunha ocular de episódios que posteriormente serão vividos, conhecidos, lidos, aceitos ou negados por Freud. Van Leyden se encontra com uma série de personagens cujas ideias se tornarão historicamente ilustres: Condorcet, Galiani, Guilhotin, Marat, Puységur; outros personagens incógnitos, ficcionais, figuram ideias de Spinoza, Hölderlin, Rousseau, Nietzsche... Na realidade, todos esses personagens são alegorias para a história das ideias de Sloterdijk. O autor não se atém aos fatos historicamente comprovados nem à periodização cronológica da história, até porque, sendo o pensamento volátil, ele não opera progressivamente no tempo. O filósofo alemão cria um cenário ficcional para encenar sua história da filosofia da psicologia. No “Prólogo”, afirma o seguinte:

A história que se segue passa-se há quase duzentos anos, às vésperas de uma série de acontecimentos que passaram para a História sob o nome de Revolução Francesa.
Não se trata de um romance histórico. Trata-se do presente, do puro presente e de nada mais do que do presente. O livro empreende uma expedição a um passado não passado que ainda está marcado a ferro e fogo nas circunstâncias atuais. A história que iremos relatar passa-se no agora, no presente ampliado a que chamamos de modernidade. (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 15).

Van Leyden é, assim, uma duplicação de Freud. Ele figura, na trama narrativa, como seu alterego extemporâneo, como uma espécie de conexão atemporal entre Freud, o médico vienense do XIX e Mesmer, o austríaco do XVIII. Além disso, o personagem de Sloterdijk vivencia uma porção de acontecimentos homólogos aos que Freud viveu. O episódio da sessão magnética de Balsamo Scaferlatti, descrito no romance, é um exemplo dessa correspondência biográfica entre o personagem e Freud. Em Um estudo autobiográfico, Freud relata que quando era um estudante de medicina em Viena assistira a uma exibição pública apresentada pelo mesmeriano dinamarquês Carl Hansen. Na ocasião, afirma, convenceu-se da eficácia da hipnose para a cura das doenças nervosas. Diz ele:

[...] Notara que um dos pacientes em quem se fizera a experiência se tornara mortalmente pálido no início da rigidez cataléptica, e assim havia permanecido enquanto aquela condição havia durado. Isso me convenceu firmemente da autenticidade dos fenômenos da hipnose. (Freud, Um estudo autobiográfico, 1924).

Tal como Freud, Van Leyden é proveniente de uma família judia, cursa medicina na Faculdade de Viena e parte para a França alguns anos depois de recebido o grau de médico. Na França, assim como o ‘patriarca da psicanálise’, conhece os trabalhos terapêuticos realizados com pacientes do Hôpital Génèral de la Salpêtrière e se envolve especialmente com o sonambulismo artificial, posteriormente chamado de hipnotismo, principal método terapêutico utilizado por Freud no início de sua carreira. Porém, por ser um alterego ficcional e extemporâneo, a existência de Van Leyden não respeita tempos históricos. Ele passa por todo o calor revolucionário do século XIX, volta para a Áustria, vai à guerra franco-prussiana, retorna à França e, por fim, se transforma na própria figura de Sigmund Freud.
Mas, voltemos às Primeiras Cenas de Viagens...
O recorte feito nesse texto abarca, como já dito, o Prólogo e os 4 primeiros capítulos do livro. Nesse trecho, Van Leyden se encontra com LeBrasseur, seu primeiro mestre, que na ficha de apresentação dos personagens, publicada imediatamente após o Índice, figura como um “velho professor de medicina de Estrasburgo, mesmeriano com tendências à medicina política, filantropo e maçon.” (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 11). Sem levar em conta as referências biográficas, Le Brasseur personifica uma porção de ideias nietzscheanas4. O autor do romance trabalha justamente com esse recurso: a personificação de ideias. Friedrich Nietzsche não poderia ser o professor, primeiro porque naquela época ele ainda não existia, segundo, porque jamais se tornou professor de medicina em Estrasburgo. Enfim, aproveitando o fato de Nietzsche ser um ‘filósofo extemporâneo’, Sloterdijk empresta algumas de suas teorias para dar voz a LeBrasseur que, inclusive, assume muitas vezes a voz de alguém que intui acontecimentos vindouros.
LeBrasseur confunde o espírito de seu Van Leyden, abala os pilares de sua moral cristã, ataca as bases de seu Eu civilizado, ‘tira-lhe o chão’ (Idem, p. 51). Provoca-o a pensar de maneira diferente e anuncia a ‘Psicologia das alturas’, uma nova arte curativa de cidadãos modernos. (Idem, p. 49).

Diz LeBrasseur:

[...] Enquanto se fala da impotência, verá nessas torres a mais terrível ânsia pelo poder: enquanto se fala de temor a Deus, verá desafogar-se a mais atrevida arrogância sob os céus. Enquanto com belas palavras se fazem os mais humildes votos de obediência e de entrega, verá a vontade rebelar-se da maneira mais ardorosa. [...] Desde que as torres estão de pé, a humanidade se encontra em estado de sublevação. A farsa da humildade não pode ocultar o fato de que colocamos a faca na garganta do velho Deus para, depois que ele se esvaia em sangue, possamos ocupar o Seu lugar. (Idem, p. 49).

O insensato, o homem louco que com sua lanterna procura nos templos e mercados onde está Deus, e grita, pergunta, blasfema: onde está Deus? Os demais riem dele, dão-lhe respostas idiotas e ele vocifera:

[...] “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? (Nietzsche, Gaia Ciência, p. 147-8, [125]).

LeBrasseur, sobre a vida corporal para o ser humano, um ‘animal doente pelo autocontrole’:

Para este animal doente pelo autocontrole, a vida corporal deve ser um tormento. Ele se horroriza com tudo aquilo que brota da velha natureza de seu corpo e o faz lembrar de sua origem animal, como a grandes convulsões e o furor do sexo, a decadência física, ou as carícias maternais ancestrais. Tudo isto traz recordações da impotência digna de comiseração e da natureza selvagem de sua própria essência. Mas o que é o Eu civilizado, senão uma máquina contra a impotência? Uma máquina complicada e melancólica, tesa, violenta e frágil, um autômato hipocondríaco que entra em pânico quando algo se agita amedrontadoramente em seu corpo e quando, apesar de tudo, a vida continua a pulsar e a vibrar... (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 50).

Um tema recorrente em Nietzsche é a crítica à domesticação que o ser humano tem que passar para poder existir em rebanho, para suportar a vida em sociedade. Ele se estremece contra a moral religiosa europeia, fundamentalmente contra a moral cristã, que preconiza o abandono do corpo em detrimento da alma, que ensina a contenção física e condena o fluir corporal.

[...] Não que eu pense que nisso a maldade e baixeza humana, o bicho mau e selvagem que há em nós, digamos, deveria ser dissimulado; é minha ideia, pelo contrário, que justamente como bichos domesticados somos um espetáculo vergonhoso e necessitamos de travestimento moral [...]. O europeu se disfarça na moral, porque se tornou um animal doente, doentio, estropiado, que tem boas razões para ser “domesticado”, porque é quase um aborto, algo incompleto, fraco, desajeitado... Não é a ferocidade do animal de rapina que precisa de um disfarce moral, mas o animal de rebanho com sua profunda mediania, temor e tédio consigo mesmo. A moral adorna o europeu — confessêmo-lo! — fazendo-o parecer mais nobre, mais importante, respeitável, “divino” —. (Nietzsche, Gaia Ciência, p. 246, [352]).

E para encerrar, mas um trecho de LeBrasseur e Nietzsche:

[...] Nunca observou quão poucas pessoas em nossa sociedade ainda são capazes de rir, ou de gritar, ou de soluçar a pleno pulmão? Responsáveis por esta incapacidade seriam as instituições que provocam a estagnação do fluido. Em outras palavras, seria a moderna educação artificial, que reprime tudo aquilo que procura emergir buscando a luz [...]. (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 53).

No aforismo 14 da “Terceira dissertação” da Genealogia da Moral (“O que significam os ideias ascéticos”), Nietzsche fala sobre a condição doentia do homem civilizado. Em sua perspectiva, a condição doentia é o normal no homem que se submete às regras da moral ascética. Nesse texto, o filósofo denuncia a proliferação de instituições ascéticas, como as igrejas e universidades, que estariam incentivando e afirmando a enfermidade humana. Em um trecho, diz o seguinte:

[...] Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os olhos e ouvidos, sente, em quase toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a um ar de hospital — falo, naturalmente, das áreas de cultura do homem, de toda espécie de “Europa” sobre a terra. (Nietzsche, Genealogia da moral, p. 111, [14]).

_______________________________________________________________________________
1 - Referência ao personagem de Goethe em O sofrimento do jovem Werther, livro publicado em 1774.
2 - Cf. ZWEIG. A cura pelo espírito, p. 59.
3 - Sociedade fundada em Paris por Nicolas Bergasse ‘um filósofo-advogado-hipocondríaco’ proveniente de uma rica família comerciante de Lyon, e Guillaume Kornmann, ‘rico banqueiro de Estrasburgo’, ambos ‘discípulos’ de Mesmer e membros da Loja Maçônica. Cf. DARNTON. O lado oculto da revolução, p. 54.
4 - Lembrando que, além das ideias de Nietzsche, LeBrasseur agrega também pensamentos referentes a outros pensadores, como Spinoza, Rousseau, Bergasse, Charcot e o próprio Mesmer.

_______________________________________________________________________________

BIBLIOGRAFIA
DARNTON, Robert. O lado oculto da revolução: Mesmer e o final do Iluminismo na França. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

FREUD, Sigmund. Um estudo autobiográfico [1924]. Dir. Jayme Salomão. In: Obras Completas, vol. 20, Edição Eletrônica Obras Psicológicas de Sigmund Freud: Imago.

GOETHE, Johann Wolfgang von. O sofrimento do jovem Werther. Trad. Anônima; apresentação de Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. Gaia Ciência. [125;352]. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 147-8;246.

__________.“Terceira dissertação: O que significam os ideias ascéticos”. In: Genealogia da moral: uma polêmica. [14]. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 87-149.

SLOTERDIJK. Peter. A árvore mágica: o surgimento da psicanálise no ano de 1785. Tentativa épica com relação à filosofia da psicologia. Trad. Andrea J. H.; Fairman. Rio de Janeiro: LTC – Livros técnicos e científicos Editora; Casa-Maria Editorial, 1988.

ZWEIG, Stefan. A cura pelo espírito: Mesmer, Mary Baker-Eddy, Freud. Rio de Janeiro: Guanabara, s/d.


FILMOGRAFIA
HUSTON, John (dir.). Freud além da alma, 1962.


Boas notícias! Encontrei o link do texto. Agora ele pode ser 'oficialmente' lido se você clicar AQUI!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

quem ouve? quem houve?

quem ouve? quem houve?