domingo, 18 de março de 2012

Arranque-se, mancebo

Batida por tempestade, recolhe-se a um desconhecido porto africano a esquadra de Ulisses, o solerte vencedor dos troianos. Estavam agora arribando à terra dos Lotófagos, gente boa, amável e hospitaleira. Ulisses verifica logo que, apesar do bom tratamento recebido é preciso sair dali o mais depressa possível. Os nativos ofereceram a três dos visitantes um fruto que, comido, produziu-lhes efeitos terrivelmente estranhos: os gregos esqueceram-se imediatamente do que são e de onde são, e adquiriram de pronto um tão grande amor às pessoas e às coisas que o cercam, que não querem mais ir embora. Os três comedores de lótus só à força foram levados para os barcos e ali tiveram que ser amarrados. Ou sairiam logo ou ficariam para sempre. E Ulisses velejou apressado, fugindo da flor que produz o esquecimento.

Baseado neste episódio, o renomado novelista inglês Somerset Maugham produziu um dos seus melhores contos intitulado "O comedor de lódão". É a estória de um funcionário inglês que vai passar umas férias na ilha de Capri, perto de Nápolis e historicamente famosa pelas suas belezas naturais e por ter ali vivido uma vida depravadíssima o imperador Tibério. Diz Axel Munthe em seu "Livro de San Michele" que até hoje, quando acontece algo doloroso ou estranho na ilha, os moradores garantem que aquilo é "obra de Tibério" - "coisa" do libidinoso imperador. O inglês, já cinquentão, ficou fascinado, embasbacado, fanático pela ilha. Tratou de estudar um meio de ficar morando em Capri. Passou a mão num lápis, fez uns cálculos e chegou a esta conclusão: Tinha um seguro para a velhice que desde moço vinha pagando: este seguro poderia ser recebido já, com um desconto razoável; seu emprego ele poderia vendê-lo a qualquer candidato, o que lhe daria uns bons cobres. Ainda de lápis na mão calculou quanto gastaria por ano na ilha e quantos anos ainda poderia viver. Em números: teria no bolso mil contos, gastaria 100 contos por ano e, no máximo viveria mais uns 10 anos. Seu médico já não lhe repetira muitas vezes que a sua vida estava por um fio? Não fora mesmo por motivo de saúde que viera passar as suas férias ao cálido sol do Mediterrâneo? Decidiu-se. Voltou à Inglaterra, recebeu o seguro, vendeu o emprego, veio para a ilha, contratou uma pensão e foi viver... O novelista o conheceu na ilha quinze anos depois. Vivia ele das esmolas que recebia em troca de servicinhos que prestava aqui e acolá. Não morrera no prazo marcado. O clima sarara-o e a nova vida lhe dera razões de sobra para viver. Suicidar-se não quis ou não teve coragem. Agora, maltrapilho, sujo, barbudo, escondia-se à aproximação de pessoas estranhas ou fugia abertamente se fossem elas da Inglaterra. Não queria que conhecessem o seu drama, a história do seu fracasso.

Ouvi na minha infância um orador contar que existia uma ave, uma espécie de águia, talvez, que faz o ninho assim: escolhe galhos cheios de espinhos e os dispõe na forma costumeira que têm os ninhos. A seguir forra-o por dentro com algodão, paina ou penas macias. Quando os filhotes emplumam e chega o momento de aprender a voar, só há um meio de arrancá-los do ninho onde querem ficar perenemente no " dolce far niente": é subtrair-lhes o gostoso colchão e deixá-los a se espetarem nos espinhos. Aí eles não têm outro recurso: arrancam-se... E aos trambolhões e aos sustos vão perdendo o medo da amplidão e em pouco tempo passam a viver perigosamente uma vida de liberdade e segurança. São os senhores do espaço, os vencedores das procelas, os que voam mais alto.

Você quer saber mesmo, meu rapaz, onde é a terra dos Lotófagos? Pode ser a sua casa, o seu distrito, o seu bairro, a sua cidade. Quer saber o nome do comedor de lódão do novelista? Pode ser o seu ou o do seu colega, o de um seu amigo.

Embalado pelas facilidades da casa do papai, tolhido pelos doces laços do afeto da família, preso aos encantos de uma jovem bonita que lhe quer bem, o moço sente a enorme tentação de desistir da luta antes mesmo de começá-la. Na idade propícia para a conquista de conhecimentos e de meios que o capacitem para enfrentar triunfalmente os embates da vida, ele sente a inebriante tentação de ficar indefinidamente devorando uma a uma as dulçorosas flores de lótus que o ambiente doméstico e citadino lhe oferece em bandeja de prata. E o seu patrimônio mais precioso, esse que não poderá jamais recuperar por mais dinheiro que venha a ganhar, estará perdido para sempre: o tempo que se foi.

Enervado pela monotonia, pela rotina de todo dia, pela mesmice das semanas e dos meses, pela repetição, das coisas e das caras, o moço degenera fatalmente. No jogo, na bebida, na frequência a lugares onde não mandaria um irmão mais novo ou um filho se o tivesse, procura interromper o círculo vicioso que o exaspera e esmaga.

A um jovem amigo que me procurou nesta semana perguntando-me: - "E agora, professor, que é que eu faço?" - respondi-lhe usando o verbo que está na moda atualmente: Arranque-se! Gostei do verbo pela fidelidade que existe na ideia formada em nossa mente: é preciso realmente que o moço "se arranque". Sente-se aqui a ideia de força, força compulsória que desprende do solo, com as raízes, a planta que se quer levar para um sítio melhor para ela e para todos que lhe querem bem. Seus estudos aqui terminaram? Não pense que já ganhou a parada. Ela apenas começou. Esses certificados, esses diplomas, são apenas armas decisivas para a vitória daqueles que estão aptos moral e espiritualmente para a luta, mas podem ser apenas trambolhos que dificultam a debandada daqueles que esperam tão somente o brado de "salve-se quem puder".

Arranque-se! Vá continuar os seus estudos numa cidade maior, vá aprender a dar às coisas o exato valor que elas merecem, vá temperar o seu caráter na forja do trabalho e da necessidade. E volte apenas como um guerreiro que momentaneamente deixa a batalha para um repouso revigorador, ou então venha triunfante contribuir com a sua capacidade plenamente desenvolvida para o progresso, o bem estar de sua terra. Se for preciso fazer sangrar o coração nos espinheiros da saudade e da solidão, faça-o agora quando a cicatrização é mais fácil. Da solitude e da mudez da crisálida que vegeta no recanto do jardim, decorrido o prazo de sacrifício que a si própria fixou uma feia lagarta, surgirá a flor alada de uma borboleta multicor. Arranque-se!

Crônica de Célio Rodrigues Siqueira escrita em 1961 e publicada no livro "Cinzeiros e Jequitibás", de 1985.

terça-feira, 6 de março de 2012

tempestade solar

o Sol está a lamber a Terra!

quem ouve? quem houve?

quem ouve? quem houve?