segunda-feira, 30 de abril de 2012

novo ciclo

...acabou-se a poesia...
...é hora de prosa...

A história das ideias na "Árvore mágica" de Peter Sloterdijk

O texto que se segue foi publicado nos Anais do IV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina, realizado em 2010. No entanto, há um mistério que o ronda: não é possível encontrá-lo em qualquer site na internet, não existe link para os textos dos Anais, nenhuma pista... Por isso resolvi publicizá-lo publicando-o aqui.

De lá para cá revi algumas afirmações que fiz, porém, por hora, não farei qualquer alteração ou correção do texto. Aguardo comentários ou críticas que apontem tais imprecisões... De outra maneira não considero necessário fazer qualquer reforma.

EXERCÍCIO NARRATIVO: AS PRIMEIRAS CENAS DE VIAGEM
A árvore mágica não é um romance histórico, é uma história da filosofia, uma ficção histórica ambientada no ano de 1785. A maior parte da narrativa passa-se na França, embora o protagonista, Jan van Leyden, tenha iniciado seu percurso na Áustria, sua terra natal. 

Recém formado em medicina pela Faculdade de Viena, enfrentando a aspereza do início de uma carreira profissional, encarando as dificuldades de um burguês típico daquela época, naquelas paragens germânicas, Jan seguia sua vida sem grandes emoções. Tal como Werther1, transitava pela cultura erudita germânica, era um nobre em seus costumes, porém, socialmente, não passava de um burguês. Desde que lera O sofrimento do jovem Werther vinha se sentindo meio sufocado, com a sensação de que seu mundo não cabia mais em si, em Viena, na Academia. Periodicamente relia trechos das cartas do jovem burguês de Goethe como uma espécie de amuleto sagrado, não queria jamais se acostumar àquela vida, não podia esquecer seus planos, não devia ficar. Nas noites em que se encontrava com Silberstein, seu velho amigo, costumava declamar os trechos memorizados:

Queria retirar-me e, contudo, fiquei, com a curiosidade de examinar tudo aquilo com mais miudeza. Entretanto o resto da companhia chegou. [...] Falei com algumas destas personagens que eu conhecia, que me responderam em termos mui lacônicos. [...] Não percebi que as mulheres falavam ao ouvido umas com outras no fim da sala; que isto circulava entre os homnes, que Madame de S. falava com o Conde com ânsia (Mademoiselle de B. me disse tudo isto depois); até que finalmente o Conde veio ao pé de mim e conduziu-me para uma janela: Vós conheceis, me disse ele, nossos ridículos usos; tenho reparado que a companhia estranha ver-vos aqui [...]. (Goethe, O sofrimento do jovem Werther, p. 101-102).

Precisava sair, respirar novos ares, conhecer outros modos de vida, ver outras gentes. Não podia imaginar sua vida como a de Werther, inferiorizada devido a posições sociais, precisava criar alternativas, não queria experimentar o mesmo fim do personagem. Conforme o tempo passava, sentia o peso daquela vida maçante em suas costas. Imaginava que na França as diferenças de classe já não eram tão rígidas. Ainda que os costumes da nobreza prevalecessem sobre a burguesia, a discriminação classista estava mais suavizada. Durante anos, Jan sonhava com Paris. Tarde da noite, quando não conseguia dormir, imaginava-se em salões de festas e soirées francesas.
Até que um episódio incomum transformou seu destino.
Estamos em maio de 1785. O magnetizador italiano Balsamo Scaferlatti, o conde de Cagliostro2, se encontra em Viena para mais uma de suas sessões magnéticas. A séance reúne a nobre sociedade vienense e alguns ilustres burgueses em casa do falecido barão Von Rosenkotz. Van Leyden e Silberstein estão entre os convivas. Cético, Jan se posiciona à margem do grupo e, como mero espectador, procura observar o comportamento das damas da sociedade e analisar o semblante dos senhores presentes enquanto aguarda a entrada triunfal de Scaferlatti. E eis que o mago surge no meio do salão. Jan sente a energia que chega junto com ele, o calor toma conta do ambiente, os homens começam a transpirar, as mulheres tornam-se ofegantes e trêmulas, algumas deixam escapar gritos dissonantes, outras estão prestes a desmaiar, madame de Morawitzky fica extremamente pálida. Até que Scaferlatti levanta o dedo indicador direito acima de sua cabeça e, com esse gesto, capta todos os olhares presentes. (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 27-9). Faz-se silêncio, todos estão magnetizados. Scaferlatti toma a palavra:

Quando sonhamos que sonhamos é porque estamos próximos do despertar. Sonhadores intranquilos é o que são — já não dormem profundamente, mas tampouco ainda despertaram. O mundo dos espíritos ainda está fechado para vocês, ainda precisam de um intérprete para poder falar com os espíritos que nos rodeiam em todos os instantes de nossas vidas. Eles estão tão perto de nós que nem chegamos a distingui-los, porque jamais vemos aquilo que nos está mais próximo. Por isto, cegos e surdos como estão, precisam de ajuda para fazer com que os invisíveis falem... Os espíritos nos rodeiam por todos os lados, vivem dentro de nós, ao nosso lado e atrás de nós. Muitas gerações de acompanhantes sutis nos segredam aos ouvidos, destruidores alguns, mas também outros amáveis, alguns espíritos dos mortos e outros daqueles ainda não nascidos...
[...] Nada pode ser mais urgente agora que aprender a conversar com os espíritos. Talvez me seja dado ensinar-lhes a que se comuniquem com as forças da face oculta da lua e a que decifrem as mensagens secretas dos espíritos... (Idem, p. 29-30).

Terminada a sessão, Jan sente-se diferente. Aquela intensidade energética tocara sua alma, sente que é chegada a hora de uma mudança mais drástica. Sim, pensa ele, quero conhecer o lado oculto da lua, quero encontrar esse misterioso medicamento espiritual, a cura para os males da alma. (Idem, p. 30). No mês seguinte, Jan já está na estrada. Conseguira uma bolsa de estudos para a viagem e boas recomendações dos maçons de Viena aos confrades franceses. Passa por Munique, não se sabe por que, e segue para Estrasburgo, onde a Sociedade da Harmonia Universal mantém uma filial3. Naquela cidade, procura por LeBrasseur, um antigo professor de medicina, “[...] excêntrico exemplar de médico paracélsico, para o qual a medicina não podia ser separada de considerações sobre as analogias entre o macrocosmos e o microcosmos.” (Idem, p. 33). Um pesquisador sagaz, entusiasmado com sua grande descoberta científica, a igualdade óssea dos homens, acredita que a Ciência informará o povo a respeito de seus direitos, mostrará ao pobre seus verdadeiros aliados.

[...] Hoje em dia vemos sobretudo duas coisas que geram injustiça e apatia: o berço e a posse. Lutar contra a primeira atualmente já não é impossível. A pantomima dos grandes senhores há tempo perdeu seu significado [...]. Empreender algo contra a grande fortuna já será um pouco mais difícil, caro colega, mas para nós esta é uma “cura posterior”! (Idem, p. 41)

LeBrasseur apresenta a Jan seu laboratório, onde existem dezenas de frascos contendo partes do corpo humano: corações, pulmões, intestinos. Porém, o professor chama a atenção do jovem médico para um órgão, “um órgão especial”, diz ele: o útero. Aparentemente um órgão sem importância, ressalta o antigo médico, o útero é “volúvel e caprichoso”, age “[...] como se tivesse consciência de ser mais importante do que os outros”, é uma “copuladora mística”, lugar que “une o espírito à matéria”, um mistério para a medicina setecentista. (Idem, p. 34-5).
É nesse cenário, quando a viagem de Jan mal havia começado, que ele sente os primeiros indícios da transformação que se opera em seu interior. Vê seus pensamentos embaralhados, confusos, como se não lembrasse mais nada do que aprendera em Viena, como se todo o universo científico ruísse em torno dele, como se todas aquelas explicações a respeito da vida perdessem o sentido.

[...] Ele sentia como se alguém tivesse plantado em sua cabeça um cérebro estranho com um sistema de imagens e combinações de pensamentos deslumbrantes. Sentia como em seu interior se abria um espaço para este cérebro estranho [...]. (Idem, p. 40).

Com todas essas sensações inexplicáveis, Jan começa a esquecer-se de si mesmo e percebe que há em seu íntimo algo inteiramente novo, algo que não se conecta com o passado, que se faz presente sem que se possa nomear de onde vem, uma ruptura. Não sente mais o chão sob os pés, deseja desesperadamente encontrar um local inacessível ao pensamento, esse pensamento persecutório e incessante que decidira montar guarda em sua mente. — Quem sou eu? O que me explica? Quais são as marcas da cultura que levo marcadas em minha pele? Um animal selvagem domesticado, uma fera que vive em rebanho. Sou um despropósito para a natureza. Maldita cultura, maldita moral. — Sua cabeça gira, suas mãos tremem, sente arder-se em febre. Vê flashes dos momentos vertiginosos que passou com LeBrasseur no topo daquela torre. Conforme os pensamentos cruzam sua mente como relâmpagos, Jan escuta as badaladas estourando em seus ouvidos. E lembra-se das palavras do professor:

Você precisa tomar cuidado. “[...] Irão lhe explicar que essas torres são símbolos do temor a Deus de nossos ancestrais, que são monumentos que simbolizam a mais profunda submissão dos homens ante o Absoluto e, símbolos duradouros da entrega da vontade humana nas mãos da Divina Providência.”
[...]
Irão lhe dizer muitas coisas e você “[...] terá que se decidir se irá querer acreditar em nossas doutrinas inspiradas na teologia das torres ou se irá preferir confiar em seus olhos, que veem uma coisa completamente diferente daquilo que dizem seus ouvidos. (Idem, p. 48).

As badaladas ficam cada vez mais altas, sua cabeça pulsa, a incessante voz do professor: “[...] Enquanto se fala da impotência, verá nessas torres a mais terrível ânsia pelo poder [...]”; “[...] Enquanto com belas palavras se fazem os mais humildes votos de obediência e de entrega, verá a vontade rebelar-se da maneira mais ardorosa.” (Idem, p. 48-9). — O que ele quis dizer com ‘colocamos a faca na garganta do velho Deus para depois ocuparmos seu lugar?’ Há muito esse Deus de meus ancestrais morreu, mas nunca me senti tão responsável pela sua morte quanto agora. Eu sou o animal mais maldito sobre a face da Terra, sou responsável por esse caos que aí está. E o caos parece que está somente em mim. — Jan passa o cair da tarde e toda noite perseguido por esses pensamentos.

No dia seguinte sente-se mais calmo e consegue pensar melhor sobre a ‘Psicologia das alturas’. Segundo LeBrasseur, no futuro será essa psicologia que dará eficácia à medicina, pois será necessário aos médicos curar os homens modernos da doença que eles se tornarão. O homem, tendo se colocado tão superior à natureza, sentirá vertigens ao olhar para baixo. (Idem, p. 49-50). Caberá ao ‘psicólogo das alturas’ trazer esses homens de volta para o chão, pois

[...] Quem constrói obras que alcançam tamanha altura só poderá ter problemas no chão. Quem sobe tão alto, sentirá que a maldosa Mãe-Terra se abrirá sob seus pés como abismo assustador. Sintomas de altura, nada mais são que sintomas de altura e apenas com isto teremos que lidar. A nova arte precisa resgatar o cidadão refugiado nas alturas e deformado pela cultura de seu torpor de vitória, para depois colocá-lo numa natureza enriquecida e novamente amiga. Para poder fazer frente ao mal das alturas é preciso que cavemos poços em sua existência física. (Idem, p. 49).

Sim, como uma toupeira, escavar os edifícios do Eu, procurar libertar a alma humana da prisão moral, do estranho e absurdo amestramento a que foi submetida, abrir suas comportas para o que lhe resta de natural, selvagem e indomável. Des-civilizar o Eu,

[...] Uma máquina complicada e melancólica, tesa, violenta e frágil, um autômato hipocondríaco que entra em pânico quando algo se agita amedrontadoramente em seu corpo e quando, apesar de tudo, a vida continua a pulsar e a vibrar... (Idem, p. 50).

Na hora do almoço, LeBrasseur fala sobre a comunidade médica de Estrasburgo e a ironiza, afirmando se tratar mais de uma ‘ordem monástica’ ou uma ‘seita secreta’ do que uma ‘organização profissional’. Conta-lhe acerca dos eventos realizados no passado pelos mesmerianos da Alsácia que, mais tarde, uniram-se aos confrades de Estrasburgo formando a Sociedade da Harmonia Universal. — “[...] haviam reunido a melhor parte da nobreza alsaciana, juntamente com a burguesia progressiva, visando superar as forças desarmônicas que inibiam tanto a vida moral do país, quanto prejudicavam o bem-estar físico do indivíduo.” (Idem, p. 53). O ser humano, embora pareça, não está isolado do resto da Existência. Ele é penetrado por um fluido universal, um fluido que penetra a todos os seres animados e inaminados, um fluido energético. Saúde e liberdade são, portanto, dois lados de mesma moeda. Obviamente, meu caro, tenha cuidado com a liberdade, em nome dela muitas pessoas morrerão. As árvores da liberdade e da guilhotina crescem juntas...
Enfim, voltemos ao assunto. Que tal se voltássemos àquela conversa iniciada ontem, sobre natureza e cultura? — Jan fica tenso, mas antes que consiga responder à pergunta, o professor dá continuidade à conversa. — Lembra que falamos a respeito do homem colocar-se acima da natureza e tornar-se um ser artificial? Esse é o homem civilizado, o homem doente. O distanciamento da natureza, a aquisição de regras morais, a submissão a costumes tão artificiais formaram no hipocôndrio humano uma represa à livre passagem do fluido. Essa contenção, esse aprisionamento de energias é a própria doença. A arte do magnetizador, meu jovem, consiste em abrir as comportas da represa da alma, desmagnetizar o hipocôndrio, deixá-lo fluir. (Idem, p. 53).

[...] Nunca observou quão poucas pessoas em nossa sociedade ainda são capazes de rir, ou de gritar, ou de soluçar a pleno pulmão? Responsáveis por esta incapacidade seriam as instituições que provocam a estagnação do fluido. Em outras palavras, seria a moderna educação artificial, que reprime tudo aquilo que procura emergir buscando a luz [...]. (Idem, p. 53).

Para concluir a conversa, LeBrasseur comunica Jan que precisará viajar a um castelo vizinho pois um confrade adoecera repentinamente e precisava de seus serviços. Aconselha-o a seguir a estrada até Paris. Pede-lhe para ficar atento aos rumores acadêmicos a fim de perceber se os dias de Mesmer na capital estão mesmo contados. Admite que desde seu sumiço repentino a Sociedade de Paris anda fora de controle e a repercussão disso torna-a cada dia mais desagradável aos confrades de outras regiões. Diz-lhe também para seguir viagem e ir a Soissons, a nordeste da capital, onde deverá procurar por Armand-Marie-Jacques de Chastenet, o marquês de Puységur. O aristocrata, diz ele, pratica atualmente uma forma totalmente nova de terapia: o sono artificial, e mantém muito boas relações com a Sociedade de Estrasburgo. (Idem, p. 54).

[...] Não são poucas as mentes lúcidas que veem nele o único herdeiro legítimo da missão magnética. Ainda que os senhores Bergasse, Carra, Deslon e Brissot disputem nos folhetins parisienses tentando obter as melhores peças da herança de Mesmer... (Idem, p. 54).

Despedem-se. Le Brasseur retira-se para o campo e Van Leyden para a biblioteca. Já que terá de esperar uma diligência que partirá para Verdun dentro de alguns dias, pensa em aproveitar o tempo preparando-se intelectualmente para os próximos encontros. Sente-se ainda muito estranho, frágil até: deixara de ser senhor de seus pensamentos e agora permanecia à deriva deles, era um indigente.

EXERCÍCIO EXPLICATIVO DAS PRIMEIRAS CENAS DE VIAGEM
Como contar a história de um romance desconhecido do público? Sim, porque falar de Capitu e Bentinho para intelectuais brasileiros contemporâneos requer um nível mais superficial de detalhamento da história, visto que, em tese, todos eles conhecem esses personagens machadianos que figuram no romance Dom Casmurro. Filmes, músicas, documentários, diversos comentários e análises já foram feitos a respeito desse livro que, sem dúvida, marcou época. Sem contar que durante anos tal livro foi leitura requerida aos alunos do Ensino Médio que desejassem cursar uma graduação. De fato, Capitu povoa as ideias de literatos e cientistas humanos brasileiros, tal como a Tieta de Jorge Amado, Policarpo Quaresma de Lima Barreto e outros tantos personagens da literatura geral, como Sherlock Holmes, Mrs. Dalloway, Madame Bovary e Fausto. Porém, o livro em questão, A árvore mágica, não é um sucesso de público. Não muitas pessoas ouviram falar dele e poucas o leram. O livro, escrito em 1985, foi publicado em 1988 no Brasil por uma editora pouco conhecida (Casa Maria Editorial; Livros Técnicos e Científicos) do Rio de Janeiro que, se atualmente está na ativa, não se modernizou ao ponto de manter um site na internet. Sem distribuição e divulgação, recheado de ideias filosóficas, o livro não é realmente um exemplo de sedução para o grande público. Também não circula muito entre os acadêmicos. Nos mecanismos de busca na internet, por exemplo, encontrei poucos blogs que apresentam comentários e resenhas do livro e de dois a três livros que dedicam um capítulo ou parte de um capítulo à análise d'A árvore mágica.
Então, como contar essa história sem perder a poesia que nela vive? O texto apresentado sob o título de Primeiras Cenas de Viagem não passa, portanto, de um ensaio, uma tentativa de leitura do romance do filósofo alemão. Uma experimentação que intenciona evitar as profundas deformações narrativas que geralmente os textos acadêmicos provocam nos textos literários. No ensaio desfilam os assuntos histórico-filósofos tratados pelo autor desde o “Prólogo” até o capítulo 4: “Da república místico-elétrica e sobre os quadris azuis das taitianas”, bem como referências intertextuais que visam o enriquecimento da ambientação histórica do personagem. Refere-se, portanto, apenas à primeira etapa de viagem do protagonista, abarca apenas o período em este esteve em contato direto com seu primeiro mestre: LeBrasseur.
Por narrar uma história das ideias, A árvore mágica é uma interpretação do ‘espírito’ filosófico de fins do século XVIII, mais especificamente, de uma mentalidade erudita que envolvia o intercâmbio de ideias filosóficas germânicas e francesas: uma filosofia da psicologia. O subtítulo da obra: “O surgimento da psicanálise no ano de 1785. Tentativa épica com relação à filosofia da psicologia” dá indícios a respeito da opinião do autor sobre a história da psicanálise. Para ele, ela não surgiu a partir da teoria de Freud, tem uma história anterior, percorreu diversos caminhos até chegar nesse formato canônico proposto e assinado pelo vienense do século XIX. Sloterdijk dá, portanto, um passo de volta na história da psicanálise e traz à tona o diálogo filosófico a respeito da cura dos males da alma travado desde cerca de 100 anos antes da viagem de Sigmund à França, em 1885. Dessa maneira, o autor apresenta sua leitura sobre a mentalidade intelectual a que Freud estava inserido, traz para o texto as referências literárias e ideias filosóficas predominantes nos círculos eruditos europeus nos séculos XVIII e XIX, tal como o empirismo, materialismo, espiritualismo, racionalismo, magnetismo animal e tantos outros sistemas explicativos da vida que por certo transitaram pela mente científica de Freud.
E como Sloterdijk faz isso? Ele corporifica os ‘encontros’ literários e historiográficos de Freud em Jan Van Leyden, o protagonista do romance. O personagem é testemunha ocular de episódios que posteriormente serão vividos, conhecidos, lidos, aceitos ou negados por Freud. Van Leyden se encontra com uma série de personagens cujas ideias se tornarão historicamente ilustres: Condorcet, Galiani, Guilhotin, Marat, Puységur; outros personagens incógnitos, ficcionais, figuram ideias de Spinoza, Hölderlin, Rousseau, Nietzsche... Na realidade, todos esses personagens são alegorias para a história das ideias de Sloterdijk. O autor não se atém aos fatos historicamente comprovados nem à periodização cronológica da história, até porque, sendo o pensamento volátil, ele não opera progressivamente no tempo. O filósofo alemão cria um cenário ficcional para encenar sua história da filosofia da psicologia. No “Prólogo”, afirma o seguinte:

A história que se segue passa-se há quase duzentos anos, às vésperas de uma série de acontecimentos que passaram para a História sob o nome de Revolução Francesa.
Não se trata de um romance histórico. Trata-se do presente, do puro presente e de nada mais do que do presente. O livro empreende uma expedição a um passado não passado que ainda está marcado a ferro e fogo nas circunstâncias atuais. A história que iremos relatar passa-se no agora, no presente ampliado a que chamamos de modernidade. (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 15).

Van Leyden é, assim, uma duplicação de Freud. Ele figura, na trama narrativa, como seu alterego extemporâneo, como uma espécie de conexão atemporal entre Freud, o médico vienense do XIX e Mesmer, o austríaco do XVIII. Além disso, o personagem de Sloterdijk vivencia uma porção de acontecimentos homólogos aos que Freud viveu. O episódio da sessão magnética de Balsamo Scaferlatti, descrito no romance, é um exemplo dessa correspondência biográfica entre o personagem e Freud. Em Um estudo autobiográfico, Freud relata que quando era um estudante de medicina em Viena assistira a uma exibição pública apresentada pelo mesmeriano dinamarquês Carl Hansen. Na ocasião, afirma, convenceu-se da eficácia da hipnose para a cura das doenças nervosas. Diz ele:

[...] Notara que um dos pacientes em quem se fizera a experiência se tornara mortalmente pálido no início da rigidez cataléptica, e assim havia permanecido enquanto aquela condição havia durado. Isso me convenceu firmemente da autenticidade dos fenômenos da hipnose. (Freud, Um estudo autobiográfico, 1924).

Tal como Freud, Van Leyden é proveniente de uma família judia, cursa medicina na Faculdade de Viena e parte para a França alguns anos depois de recebido o grau de médico. Na França, assim como o ‘patriarca da psicanálise’, conhece os trabalhos terapêuticos realizados com pacientes do Hôpital Génèral de la Salpêtrière e se envolve especialmente com o sonambulismo artificial, posteriormente chamado de hipnotismo, principal método terapêutico utilizado por Freud no início de sua carreira. Porém, por ser um alterego ficcional e extemporâneo, a existência de Van Leyden não respeita tempos históricos. Ele passa por todo o calor revolucionário do século XIX, volta para a Áustria, vai à guerra franco-prussiana, retorna à França e, por fim, se transforma na própria figura de Sigmund Freud.
Mas, voltemos às Primeiras Cenas de Viagens...
O recorte feito nesse texto abarca, como já dito, o Prólogo e os 4 primeiros capítulos do livro. Nesse trecho, Van Leyden se encontra com LeBrasseur, seu primeiro mestre, que na ficha de apresentação dos personagens, publicada imediatamente após o Índice, figura como um “velho professor de medicina de Estrasburgo, mesmeriano com tendências à medicina política, filantropo e maçon.” (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 11). Sem levar em conta as referências biográficas, Le Brasseur personifica uma porção de ideias nietzscheanas4. O autor do romance trabalha justamente com esse recurso: a personificação de ideias. Friedrich Nietzsche não poderia ser o professor, primeiro porque naquela época ele ainda não existia, segundo, porque jamais se tornou professor de medicina em Estrasburgo. Enfim, aproveitando o fato de Nietzsche ser um ‘filósofo extemporâneo’, Sloterdijk empresta algumas de suas teorias para dar voz a LeBrasseur que, inclusive, assume muitas vezes a voz de alguém que intui acontecimentos vindouros.
LeBrasseur confunde o espírito de seu Van Leyden, abala os pilares de sua moral cristã, ataca as bases de seu Eu civilizado, ‘tira-lhe o chão’ (Idem, p. 51). Provoca-o a pensar de maneira diferente e anuncia a ‘Psicologia das alturas’, uma nova arte curativa de cidadãos modernos. (Idem, p. 49).

Diz LeBrasseur:

[...] Enquanto se fala da impotência, verá nessas torres a mais terrível ânsia pelo poder: enquanto se fala de temor a Deus, verá desafogar-se a mais atrevida arrogância sob os céus. Enquanto com belas palavras se fazem os mais humildes votos de obediência e de entrega, verá a vontade rebelar-se da maneira mais ardorosa. [...] Desde que as torres estão de pé, a humanidade se encontra em estado de sublevação. A farsa da humildade não pode ocultar o fato de que colocamos a faca na garganta do velho Deus para, depois que ele se esvaia em sangue, possamos ocupar o Seu lugar. (Idem, p. 49).

O insensato, o homem louco que com sua lanterna procura nos templos e mercados onde está Deus, e grita, pergunta, blasfema: onde está Deus? Os demais riem dele, dão-lhe respostas idiotas e ele vocifera:

[...] “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? (Nietzsche, Gaia Ciência, p. 147-8, [125]).

LeBrasseur, sobre a vida corporal para o ser humano, um ‘animal doente pelo autocontrole’:

Para este animal doente pelo autocontrole, a vida corporal deve ser um tormento. Ele se horroriza com tudo aquilo que brota da velha natureza de seu corpo e o faz lembrar de sua origem animal, como a grandes convulsões e o furor do sexo, a decadência física, ou as carícias maternais ancestrais. Tudo isto traz recordações da impotência digna de comiseração e da natureza selvagem de sua própria essência. Mas o que é o Eu civilizado, senão uma máquina contra a impotência? Uma máquina complicada e melancólica, tesa, violenta e frágil, um autômato hipocondríaco que entra em pânico quando algo se agita amedrontadoramente em seu corpo e quando, apesar de tudo, a vida continua a pulsar e a vibrar... (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 50).

Um tema recorrente em Nietzsche é a crítica à domesticação que o ser humano tem que passar para poder existir em rebanho, para suportar a vida em sociedade. Ele se estremece contra a moral religiosa europeia, fundamentalmente contra a moral cristã, que preconiza o abandono do corpo em detrimento da alma, que ensina a contenção física e condena o fluir corporal.

[...] Não que eu pense que nisso a maldade e baixeza humana, o bicho mau e selvagem que há em nós, digamos, deveria ser dissimulado; é minha ideia, pelo contrário, que justamente como bichos domesticados somos um espetáculo vergonhoso e necessitamos de travestimento moral [...]. O europeu se disfarça na moral, porque se tornou um animal doente, doentio, estropiado, que tem boas razões para ser “domesticado”, porque é quase um aborto, algo incompleto, fraco, desajeitado... Não é a ferocidade do animal de rapina que precisa de um disfarce moral, mas o animal de rebanho com sua profunda mediania, temor e tédio consigo mesmo. A moral adorna o europeu — confessêmo-lo! — fazendo-o parecer mais nobre, mais importante, respeitável, “divino” —. (Nietzsche, Gaia Ciência, p. 246, [352]).

E para encerrar, mas um trecho de LeBrasseur e Nietzsche:

[...] Nunca observou quão poucas pessoas em nossa sociedade ainda são capazes de rir, ou de gritar, ou de soluçar a pleno pulmão? Responsáveis por esta incapacidade seriam as instituições que provocam a estagnação do fluido. Em outras palavras, seria a moderna educação artificial, que reprime tudo aquilo que procura emergir buscando a luz [...]. (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 53).

No aforismo 14 da “Terceira dissertação” da Genealogia da Moral (“O que significam os ideias ascéticos”), Nietzsche fala sobre a condição doentia do homem civilizado. Em sua perspectiva, a condição doentia é o normal no homem que se submete às regras da moral ascética. Nesse texto, o filósofo denuncia a proliferação de instituições ascéticas, como as igrejas e universidades, que estariam incentivando e afirmando a enfermidade humana. Em um trecho, diz o seguinte:

[...] Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os olhos e ouvidos, sente, em quase toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a um ar de hospital — falo, naturalmente, das áreas de cultura do homem, de toda espécie de “Europa” sobre a terra. (Nietzsche, Genealogia da moral, p. 111, [14]).

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1 - Referência ao personagem de Goethe em O sofrimento do jovem Werther, livro publicado em 1774.
2 - Cf. ZWEIG. A cura pelo espírito, p. 59.
3 - Sociedade fundada em Paris por Nicolas Bergasse ‘um filósofo-advogado-hipocondríaco’ proveniente de uma rica família comerciante de Lyon, e Guillaume Kornmann, ‘rico banqueiro de Estrasburgo’, ambos ‘discípulos’ de Mesmer e membros da Loja Maçônica. Cf. DARNTON. O lado oculto da revolução, p. 54.
4 - Lembrando que, além das ideias de Nietzsche, LeBrasseur agrega também pensamentos referentes a outros pensadores, como Spinoza, Rousseau, Bergasse, Charcot e o próprio Mesmer.

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BIBLIOGRAFIA
DARNTON, Robert. O lado oculto da revolução: Mesmer e o final do Iluminismo na França. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

FREUD, Sigmund. Um estudo autobiográfico [1924]. Dir. Jayme Salomão. In: Obras Completas, vol. 20, Edição Eletrônica Obras Psicológicas de Sigmund Freud: Imago.

GOETHE, Johann Wolfgang von. O sofrimento do jovem Werther. Trad. Anônima; apresentação de Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. Gaia Ciência. [125;352]. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 147-8;246.

__________.“Terceira dissertação: O que significam os ideias ascéticos”. In: Genealogia da moral: uma polêmica. [14]. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 87-149.

SLOTERDIJK. Peter. A árvore mágica: o surgimento da psicanálise no ano de 1785. Tentativa épica com relação à filosofia da psicologia. Trad. Andrea J. H.; Fairman. Rio de Janeiro: LTC – Livros técnicos e científicos Editora; Casa-Maria Editorial, 1988.

ZWEIG, Stefan. A cura pelo espírito: Mesmer, Mary Baker-Eddy, Freud. Rio de Janeiro: Guanabara, s/d.


FILMOGRAFIA
HUSTON, John (dir.). Freud além da alma, 1962.


Boas notícias! Encontrei o link do texto. Agora ele pode ser 'oficialmente' lido se você clicar AQUI!

terça-feira, 24 de abril de 2012

les femmes savantes: sabichonas ou eruditas?

Em 1672 foi apresentada pela primeira vez em Paris a peça “Les femmes savantes” de Molière. Traduzindo o título ao pé da letra teríamos uma versão brasileira intitulada “As mulheres sábias”. Contudo, as traduções brasileiras conhecidas dessa obra não levaram o nome literal adiante. A primeira, feita por Jenny Klabin Segall na década de 1960, recebeu o título de “As sabichonas”; a segunda, de Millôr Fernandes, ficou sendo “As eruditas”. Creio que a mudança do nome em brasileiro seja adequada aos novos tempos... Na época de minha avó o termo de Segall talvez tivesse mais impacto... Lembro-me até que ela, minha avó, costumava usar o adjetivo para se referir, com humor e um leve traço de simpatia, às mulheres mais independentes e mandonas. “A sabichona da Rosilda já deu um jeito no marido. Agora ele não atrapalha mais nossos chás-da-cinco na terça feira, ficamos à vontade para colocar nossos assuntos em dia”. Optei nesse texto pelo termo “sabichona”. Por dois motivos: o primeiro, e mais importante, é que ele me faz lembrar minha avó, sua maneira de falar, seu vocabulário; o segundo, é que o termo soa mais literário que “erudita”.

Molière foi um influente dramaturgo francês do século XVII que ganhou destaque na produção, encenação e direção de comédias. Era um observador dos tipos e trejeitos humanos, elementos explorados com perspicácia em seus personagens. Entre tantos aspectos da sociedade francesa parodiados e satirizados por ele, o salão literário ganhou referências especiais... assim como suas damas...
A primeira dessas peças foi encenada em 1659 em Paris e recebeu o título de Précieuses ridicules (em brasileiro literal, “Preciosas ridículas”). Essa peça, que segundo Erich Auerbach fazia referência “a primeira e mais brilhante das “sabichonas”, a marquesa de Rambouillet”, teve tamanho impacto na sociedade francesa e descreveu tão ‘perfeitamente’ as reuniões íntimas dessas importantes madames que o termo précieuse tornou-se sinônimo de... sabichonas! (segundo o tradutor do texto José Paulo Paes), e era amplamente utilizado pelos frequentadores dessas reuniões para se referir ‘carinhosamente’ a suas anfitriãs. (p. 194-5)

 Catherine de Vivonne, a marquesa de Rambouillet, e sua filha Julie de Montausier.
Gravura de Roger-Viollet, século XVII.

Para acomodar o leitor ao costume da época, apresentarei algumas características dos tais salões literários: dizem que lá pairava uma intimidade elegante compartilhada por pessoas de nascimento diverso em pé de igualdade no que diz respeito à boa educação e ao nível moral, intelectual, estético e galanteador dos participantes. Segundo a historiadora Dominique Godineau, “o salão do século XVIII é um dos novos lugares de sociabilidade onde se encontram lado a lado nobres, burgueses ricos, letrados, homens de ciência de todas as nacionalidades”. Tais participantes, além disso, demonstravam um eloquente gosto pelo romance, o emprego exagerado de metáforas e um acentuado pedantismo na análise dos sentimentos.

São nomes que fizeram a história dos salões literários da França: madame de Rambouillet, já citada, madame d’Épinay, madame de Geoffrin, madame du Châtelet, mademoiselle de Lespinasse, madame du Deffand, madame Necker... Voltaire, d’Alembert, Diderot, Grimm, Buffon, Montesquieu, abade Galliani... etc, etc, etc.

Essa pintura de Anicet Charles Lemonnier, do século XIX, representa a leitura da tragédia "L'Orphelin de la Chine", de autoria de Voltaire, no salão de madame de Geoffrin em 1755. Estão retratados na imagem Diderot, Turgot, d'Alembert, Condillac e Voltaire (seu busto).

Enfim, o leitor deve estar ansioso para ir além das questões relativas à tradução do título e ao contexto histórico e adentrar o universo teatral de “Les femmes savantes”. Vamos à obra!

A sátira recai sobre as “mulheres da cultura”, as sabichonas que se encantavam pelo conhecimento filosófico e pela poesia ilustrada, eruditas que se tornavam referência na crítica da arte. Chamarei tais mulheres de femmes des lettres, expressão que não era usada na época. Na época, no entanto, era usado o termo hommes des lettres. Particularmente não vejo problema algum em se referir a homens e mulheres com o substantivo “homens”, afinal, nossa língua brasileira leva os nomes para o masculino quando o grupo é composto por indivíduos de sexos diferentes. Não tenho crise com expressões do tipo “um país se faz com homens e livros”, pois consigo compreender tranquilamente que o autor, no caso o ‘grande’ Monteiro Lobato, estava se referindo também às mulheres... Agora, já que falamos dos séculos XVII e XVIII, temos que fazer essa ressalva..., quanta diferença há entre “homens de letras” e “sabichonas”...

À peça, então.

A trama principal gira em torno de uma família burguesa bem posicionada na sociedade francesa. Os personagens são: Crisaldo, o patriarca; que é também marido de uma sabichona, a Filomena, que mantém um salão literário. Armanda, a filha mais velha, que entregou corpo e alma à filosofia. Acha o casamento um horror! É ela quem diz à irmã: “— A mim a palavra casamento só me traz visões imundas, submissões inúteis, contato repelente – não consigo entender você contente”. Henriqueta, a mais jovem, despreza o saber ilustrado e sonha com um marido a quem possa dedicar a alma, e também o corpo. “— E tem realização maior, pra alguém da minha idade, do que amar e ser amada, poder casar com o homem que deseja e construir com ele uma vida de compreensão e de felicidade”?

E assim começa a saga de Henriqueta para conseguir da mãe a aprovação de Cristóvão como seu marido. O caso é que Filomena já tem sua preferência. É Tremembó, um filósofo-poeta que frequenta suas reuniões e que, segundo crê, sensibilizaria sua filha para as coisas do espírito. Crisaldo e Aristides, seu irmão, apóiam Henriqueta em sua vontade; enquanto isso, a irmã, a mãe e Belisa, a tia, são partidárias fanáticas de Tremembó, por quem se derretem...
Aqui o leitor poderia pensar: — Então, tudo resolvido, se o pai da rapariga, o patriarca, apóia o casamento com Cristóvão, quem mais poderia impedi-lo? O fato é que, apesar de estarmos no século XVIII, nessa família quem costuma decidir os rumos da casa é ninguém mais ninguém menos que ela, Filomena.

Conversa vai, conversa vem, um impasse aqui, outro acolá, e quem acabou vencendo a disputa foi mesmo Henriqueta. Não que ela tenha convencido a mãe... foi o próprio Tremembó quem se mandou. Como? Por quê? O que fez o rapaz mudar de ideia? Pois bem, foi Aristides, o tio, quem lançou mão de uma artimanha infalível para convencer a sabichona e dar fim no pseudo poeta. Em presença do escrivão que deveria redigir o contrato de casamento, em meio a uma discussão entre os progenitores para decidir qual dos dois pretendentes seria o marido, Aristides aparece cabisbaixo trazendo duas cartas bombásticas. A primeira delas, para Filomena, anunciava que uma de suas disputas judiciais chegara ao fim... e ela havia perdido toda sua fortuna; a segunda, para Crisaldo, avisava sobre sua bancarrota. O desespero toma conta da família, o suor escorre do cabelo empetecado da grande dama, Crisaldo quase chora... Henriqueta e Armanda visualizam seu futuro pobre... Mas, passado o primeiro susto, logo Filomena vira de lado e proclama: “— Oh, mais que vexame! Que aflição indigna! Dar importância funesta a uma simples perda material! Para uma pessoa sábia o dinheiro não importa. Só dá importância a ele quem tem uma visão torta. Mas vamos com a cerimônia que a vida passa veloz. (Aponta Tremembó). Os bens que ele possui chegam bem pra todos nós”.
Mas eis que o poeta não concorda tanto assim com madame sabichona. Ligeiro, muda de ideia e dá no pé. Um breve silêncio toma conta da casa... e Cristóvão, timidamente, pede a palavra: “— Por mim eu gostaria de ser um pouco mais mercenário pois teria agora mais o que oferecer. Aceite porém, minha senhora, o pouco que eu tenho e rogo-lhe que não deixe que ninguém mais se intrometa no grande amor que devoto a Henriqueta”.
E Henriqueta, apaixonada, agora não quer mais se casar... Não deseja desgraçar a vida de seu ex-futuro marido dando-lhe uma família falida. O tio, percebendo o andar da carruagem, logo interrompe: “— [...] As notícias que eu trouxe não eram verdadeiras. Um estratagema, uma mentira que inventei para servir ao amor. Para mostrar a minha irmã a ambição que vivia debaixo da saia da filosofia”. Aliviados e felizes, dá-se assim o casamento.

Agora que o leitor já conhece os rumos dessa história, vamos a alguns trechos do texto teatral a fim de averiguar o tom da sátira de Molière. Seleciono trechos emblemáticos da fala dos personagens. A começar por Cristóvão.

Ele diz, entre outras pérolas: “— [...] Francamente, as mulheres eruditas não me agradam. Admito que uma mulher não seja só matrona, mas há um grande abismo entre uma dona sábia e uma sabichona. A sabedoria não faz nenhum mal desde que a mulher não esqueça o que é essencial. É bom que, algumas vezes, abandone o que sabe, seja simples no que diz, original no que faz, sem citar grandes nomes, sem tiradas pomposas, pois quem exibe cultura sem motivo, é motivo de riso”.

A seguir um diálogo entre Crisaldo, Belisa, sua irmã, e madame Filó. A sabichona acabara de demitir a cozinheira porque ela não fazia uso correto da norma culta. 
Começa Crisaldo: “— Pronto, ela foi despedida. E deu sumiço. Mas agora lhe digo: não aprovo nada disso. Uma moça boa e trabalhadora e você a despediu por motivo imbecil”.

Filomena: “— Que é que você queria? Que eu ficasse com ela me estropiando os ouvidos o dia todo, infringindo todas as regras do costume e da razão, com erros de sintaxe e vícios de oração, palavras deturpadas, mutiladas, errando todos os vocábulos e falando na sala expressões dos estábulos”?

Belisa: “— Você não, mas eu suo quando você a chama e, em vez de Senhor?, ela pergunta Inhô? Um verdadeiro escárnio ao grande Aureliô. E fala tanta besteira que já nem me causa pasmo um solecismo, uma cacofonia ou um pleonasmo”.

Crisaldo: “— Que me importa o nome do teu bisavô, que me importa a glória desse Aureliô, que me importa uma ciência senil e arbitrária se ela conhece as leis da culinária? A mim pouco me importa que quando está cozinhando, ela coloque mal concordância e regência, diga palavras grosseiras, solte palavrões e decline de forma errada: desde que não queime a minha carne assada. Me interessa mais a língua na panela do que na boca dela”.

Belisa: “— Na boca dela, oh”!

Filomena: “— Meu Deus, na boca dela”!

Crisaldo: “— Aureliô não ensina ninguém a fazer sopa. E esses teus literatos não sabem conjugar o mais simples dos pratos”.

Filomena: “— Eu me sinto envergonhada só de ouvir você gritar esse discurso estúpido! Que indignidade pra quem se diz um homem, só pensar todo o tempo em coisas materiais, sem se elevar um instante às preocupação dos espíritos. Será que o corpo, sujo e precário, merece de nós tanta atenção? Não será mais sábio esquecermos que existe, nos libertarmos de sua opressão”?

Crisaldo: “— Liberte-se você que o corpo teu é teu, mas deixa em paz o meu. Do meu, eu trato. Sujo e precário, o que você quiser, mas é o que se tem – e eu vou tratá-lo bem”.

Belisa: “— O corpo e o espírito são um conjunto só, meu caro irmão. Mas se o que os sábios dizem não é pilhéria, o espírito tem valor maior do que a matéria. Nossa preocupação é dar-lhe precedência e alimentá-lo bem com o suco da ciência”.

Crisaldo: “— Estou de acordo quanto à alimentação. Mas, com suco? Isso não! Devemos dar ao espírito refeição mais exata: um bom naco de carne, arroz, batata, para enfrentarmos precalços...”

Belisa: “— Precalços! Sim senhor”!

Crisaldo: “— Precalços ou percalços, a mim pouco me importa. Já estou cheio. Estou farto de ouvir vocês falando como se fossem as donas da cultura, quando aí fora o que dizem é que estão completamente loucas. Malucas, sim senhoras...”

Filomena: “— Como? Que teria a ousadia?...”

Crisaldo: “— (A Belisa) Falo mais a você, adorada irmãzinha. Fica toda irritada com o menor solecismo sem reparar que o seu comportamento é todo um barbarismo. Essa quantidade de livros em que vive mergulhada é uma montanha de lixo que não vale nada. Isto é: com exceção daquele Plutarco com capa de lona que eu uso para calçar o braço da poltrona. Você devia queimar toda essa porcaria, toda essa falsidade e deixar a ciência com os sábios de verdade. Quebrar ou botar fora a luneta imensa que está lá no sótão e as outras bugigangas com que vê não sei o quê. Esquecer um pouco o que se faz na lua e preocupar-se mais com a arrumação da casa, obrigação sua. Não é nada direito que uma mulher estude mil coisas irreais e descuide, na prática, das coisas mais banais. Orientar os filhos no caminho da vida, dirigir e comandar a criadagem, manter a casa limpa e arejada, gastar dinheiro com economia, taí uma filosofia. [...] Ah, como estão longe disso as madames de agora! Querem só escrever, citar autores, e a atividade do lar virou uma coisa indigna. E nesta casa, então, isso chegou à loucura total, pois aqui vocês sabem tudo, tudo, tudo, menos o fundamental. [...] O racionalismo aqui virou uma doutrina e, racionalizando, ninguém mais raciocina”.

Porém, nem todas as femmes des lettres dos séculos XVII/XVIII tinham ares independencionistas como o de Filomena. Lembremos que a obra de Molière é, antes de qualquer coisa, uma comédia, uma caricatura satírica de costumes de sua época. Segundo Godineau, madame Roland, por exemplo, uma proeminente madame de salão setecentista, não compartilhava com Filomena das ‘liberdades decisórias’ que essa personagem molièriana expressa. Diz a historiadora sobre madame Roland:

[...] Manon Roland não se considerava porta-voz ou representante do seu sexo. “Não creio que os nossos usos permitam ainda às mulheres mostrar-se abertamente, escrevia numa carta de abril de 1791; elas devem inspirar o bom, devem alimentar e encorajar todos os sentimentos úteis à pátria, mas não devem mostrar que contribuem para a ação pública. Só poderão agir abertamente quando todos os franceses tiverem merecido o nome de homens livres”. Ela própria assinava quase sempre com o nome do marido ou então deixava o texto anônimo. (p. 331)


Apenas como curiosidade histórica, madame Roland, apesar das críticas às feministas revolucionárias, não teve destino diferente do de suas contemporâneas: foi guilhotinada em novembro de 1793, cinco dias depois de Olympe de Gouges, a famosa! Segundo Godineau, apenas alguns dias depois da queda da cabeça de Manon Roland um panfleto popular chamado Folha da saúde pública publicou o seguinte recado aos “republicanos”:

A mulher de Roland, belo espírito animado por grandes projetos, um monstro segundo todos os pontos de vista, sacrificou a natureza, querendo elevar-se-lhe; o desejo de saber levou-a a esquecer-se das virtudes do seu sexo, e este esquecimento, sempre perigoso, acabou por fazê-la perecer no patíbulo. (p. 331)

Pois é, não foi apenas a fogueira religiosa que queimou bruxas. Os bravos e revolucionários burgueses franceses também deram fim a destacadas femmes des lettres...! Ainda que o episódio revolucionário tenha acontecido cento e vinte e um anos depois da primeira apresentação de “As eruditas”, ouso dizer que o imaginário social francês acerca dos papéis sexuais não havia então experimentado grandes revoluções... Tais revoluções só viriam a ocorrer na cultura ocidental em meados do século XX... cento e tanto anos depois da morte de madame Roland...


E para terminar, mais um trechinho das femmes savantes. A cena a seguir se passa entre Filomena, a sogra, Cristóvão e Tremembó. 
Quem começa é ela: “— [...] O senhor Cristóvão não lhe acharia interesse pois tudo que é ciência lhe causa repugnância: faz profissão de fé de apregoar a própria ignorância”.

Cristóvão: “— O que a senhora afirmou merece atenuantes, não sou contra os sábios, sou só contra os pedantes. Não combato a ciência, combato a impertinência que se faz passar por ciência. Não sou contra a leitura mas contra quem arrota uma falsa cultura”.
Tremembó: “— Por mim eu gostaria de saber de que maneira o senhor distingue uma cultura falsa de uma verdadeira”.

Cristóvão: “— A falsa cultura a gente logo nota: é só olhar bem pra cara do idiota”.


Referências bibliográficas:
Auerbach, Erich. Introdução aos estudos literários. Trad. José Paulo Paes. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1972.
Godineau, Dominique. “A mulher”. In: Vovelle, Michel. (Org.) O Homem do Iluminismo. Trad. Maria Georgina Segurado. Lisboa: Editorial Presença. 1997, p. 311-334.
Molière. As eruditas. Trad. Millôr Fernandes. Porto Alegre: LP&M, 2008.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Os personagens de Raul Seixas


Eu nunca cometo pequenos erros
Enquanto eu posso causar terremotos
E das tempestades já não tenho medo
Acordo mais cedo
Eu nunca me animo de ir ao trabalho
Eu sou o curinga de todo baralho
[...]
(Raul Seixas. Moleque maravilhoso, Gita, 1974.)

Raul Seixas: uma metamorfose ambulante, ator da vida, o curinga do baralho. Poeta mascarado. Bobo da corte que, como tal, tem condições de ridicularizar o próprio rei sem por isso ser punido. Criador de mundos, o carpinteiro do universo, inventor da cidade de cabeça pra baixo, autor do ei-ei-ei realista. Facetas.
Uma vida, muitas histórias. Como cantor, Raul consegue se inserir no cotidiano sonoro de pais, mães e filhos e, de lá, manda seu recado. À sua maneira, fala de coisas sérias e bastante incisivas sobre as práticas culturais daqueles que o escutam, contudo, consegue não pesar (muito) o ambiente.
Do final da década de 60 ao final da década de 80 e além, a música de Raul povoa o imaginário de muitas famílias brasileiras. Às vezes irônico, às vezes realista, erótico, trágico, cômico, profético, contestador, Raul compõem múltiplas estéticas e obtém múltiplas escutas. Seus personagens alcançam pessoas das mais variadas idades, dos mais variados gostos, dos mais variados tipos. Mas, será Raul Seixas a soma de seus personagens? Para essa pergunta, imagino, há tantas respostas quanto as que se quiser dar. Por isso, ouso dar a minha opinião que, reconheço, não é solitária: Raul Seixas não é a soma de seus personagens. Sua obra não cabe no tamanho de sua pessoa, ela transborda, se expande, ou como diz em Senhora Dona Persona: “[...] os homens passam e as músicas ficam”.
Certo filósofo alemão diria o seguinte:

“[...] o melhor é certamente separar o artista da obra, a ponto de não tomá-lo tão seriamente como a obra. Afinal, ele é apenas a precondição para a obra, o útero, o chão, o esterco e adubo no qual e do qual ela cresce — e assim, na maioria dos casos algo que é preciso esquecer, querendo-se desfrutar a obra mesma.” (Nietzsche, Genealogia da Moral, [4, III], p. 90).

Nesse trecho, ao afirmar ser melhor separar o artista da obra, Nietzsche apresenta também sua opinião em relação à interpretação da arte. E diz que, se se quiser apreciar uma obra de arte por ela mesma, deve-se esquecer o autor, deve-se evitar a ‘contiguidade psicológica’ entre artista e obra. O artista não é o que representa. “[...] Na verdade, se ele o fosse, não o poderia representar, conceber, exprimir; um Homero não teria criado um Aquiles, um Goethe não teria criado um Fausto, se Homero tivesse sido um Aquiles, e Goethe um Fausto.”1
Não gostaria de falar, portanto, da história de vida de Raul, de sua biografia, gostaria de focalizar apenas sua música, aumentar o volume da sua voz para que ela possa ressoar na imensidão do espaço e percorrer universos de ondas sonoras.

Os personagens de Raul Seixas

De Deus a Judas, de mensageiro do Diabo a filho do Sol, de anarquista libertário a egoísta, de jovem contestador a aposentado indignado...2 a cada música um personagem, um ponto de vista, uma perspectiva da vida; a cada música um ouvinte, um destinatário: o operário , a prostituta, o jovem conformado, a ‘indesejada das gentes’, a esposa, o hippie, os teóricos da vida3. Eis algumas das máscaras de um bobo da corte que nasceu para ser ator, embora fingisse ser cantor e compositor:

Eu costumo dizer que eu sou um tão bom ator que eu finjo que sou compositor e cantor e todo mundo vai na onda [...].
(Raul Seixas entrevistado por Marília Gabriela, You Tube, 1983)

Pois nessa vívida carreira de ator, Raul veste-se de figuras cotidianas, fala de acontecimentos triviais, de dúvidas corriqueiras, de angústias existenciais, de emoções arrebatadoras. Trocando continuamente suas máscaras, traz para suas músicas os dramas da vida e ensina o ouvinte a “estimar o herói escondido em todos os seres cotidianos”, bem como a “arte de olhar a si mesmo como herói, à distância e como que simplificado e transfigurado”4. Raul encena, em seu fabuloso palco musical, o teatro da vida.

Um baile de máscaras

Primeira máscara: Deus

Alô, aqui é do céu
Quem tá na linha é Deus
Tô vendo tudo esquisito
O que que há com vocês
Por favor, não deixem a peteca cair
Que o diabo diz que vai baixar de uma vez por aí
Eu fiz vocês como eu
Imagem e perfeição
E vocês anarquizando
A minha reputação
Não é só novena, terço e oração
Em vez de resmungar eu quero é ver
Vocês em ação
Vocês em ação
Foram milhões de anos dedicado a vocês
Fazendo vossas cabeças, não fui eu quem marquei
[...]
(Raul Seixas. DDI, Raul Seixas, 1983)

Numa levada ‘rock progressivo’, Raul ataca em tom profético. Nessa música entra em cena Deus, um Deus moderno que usa o telefone para falar com suas criaturas em fábula intitulada D.D.I. (Discagem Direta Inter-estelar).
Indignado com os rumos da humanidade, o soberano resolve entrar em contato com seus homens por meio desse sofisticado meio de comunicação. Avisa-os dos riscos que correm caso deixem a ‘peteca cair’, caso deixem seu nome sujo na praça, caso continuem ‘anarquizando sua reputação’. E alerta: “não adianta ficar rezando, falando, reclamando, é preciso fazer alguma coisa, é preciso uma atitude. Se o diabo baixar de uma vez por aí, se o mal acontecer, vocês já estão sabendo, a responsabilidade não é minha. Além do que, se alguém ligar para vocês dizendo ser eu, pode ser um trote do Diabo que já desceu”. E então, para finalizar a música, uma voz sombria ao fundo diz: “Eu já estou aqui.”

Segunda máscara: Judas
Lançado em 1978, o Judas de Raul reivindica o direito de contar sua versão da história, daquela famosa história da traição de Cristo, de onde ele, o discípulo escolhido, saiu amaldiçoado, responsabilizado pela ‘marca sagrada da cruz’ que pesa sobre a cristandade ao longo de todos esses séculos. O caso curioso é que, nesse mesmo ano, apenas alguns meses antes do lançamento de Mata Virgem, foi descoberto, nas areias do deserto de El Minya, no Egito, um manuscrito encadernado em couro, datado do século III que, traduzido para o português, chamou-se O Evangelho de Judas5. Teria Raul se inspirado nesse acontecimento?
No vídeo clipe da música, veiculado na época pelo Fantástico, Rede Globo, Raul interpreta Judas. Vestido com uma túnica branca à moda dos pastores de rebanhos, carrega por cima um manto vermelho. Caminhando sem direção pelo deserto, leva também uma corda e um saquinho com moedas. Ao longo do percurso, canta:

Parte de um plano secreto
Amigo fiel de Jesus
Eu fui escolhido por ele
Para pregá-lo na cruz
Cristo morreu como um homem
Um mártir da salvação
Deixando para mim seu amigo
O sinal da traição.
[...]
Se eu não o tivesse traído
Morreria cercado de luz
E o mundo hoje então não teria
A marca sagrada da cruz
E para provar que me amava
Pediu outro gesto de amor
Pediu que o traísse com um beijo
Que minha boca então marcou.
[...]
(Raul Seixas. Judas, Mata virgem, 1978)

Terceira máscara: Mensageiro do Diabo
Rock n’roll da pesada, com direito a trio de metais e órgão, o Rock do Diabo também virou vídeo clipe. Raul, de vermelho, se coloca a frente da banda. Mais ao fundo é projetada uma tela ampliada do Salvador Dalí: Mercado de escravos com o busto desaparecido de Voltaire. Uma imagem surrealista que surge no cenário e subliminarmente sugere a ligação dos escravos africanos com o rock. 

Diabo
O diabo usa capote
É rock! É toque! É forte
Diabo
Foi ele mesmo que
Me deu os toques
Enquanto Freud
Explica as coisas
O diabo fica dando os toques
Existem dois diabos
Só que um parou na pista
Um deles é o do toque
O outro é aquele do exorcista
[...]
(Raul Seixas. Rock do Diabo, Novo Aeon, 1975)

O personagem-narrador coloca-se como mensageiro do Diabo, aquele que passa adiante ‘os toques’ do pai do rock. Todavia, anuncia que há um cuidado a ser tomado: ‘existem dois diabos’. Os que procuram pelo pai do rock devem saber diferenciá-lo ‘daquele que parou na pista’. Esse segundo, o ‘do exorcista’, é também o que normalmente figura nas explicações psicológicas, pois é sabido que, o que alguns chamam de loucura, outros chamam de possessão. 

Quarta máscara: anarquista libertário
Anarquista, o personagem-narrador de A maçã endereça seu discurso à sua mulher. Em coral com Émile Armand e Errico Malatesta, por exemplo, o marido tenta evitar a cristalização dos sentimentos sugerindo a liberdade sexual. Para ele, a monogamia ‘profana o amor de todos os mortais’ ao barrar o livre fluir do desejo. O amor, acredita, deve circular entre outras pessoas para não se gastar, para não se empobrecer. Para ele, o amor deve ser livre.

[...]
Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais
Se eu te amo e tu me amas
E outro vem quando tu chamas
Como poderei te condenar
Infinita tua beleza
Como podes ficar presa
Que nem santa num altar
[...]
(Raul Seixas. A maçã, Novo Aeon, 1975)

A liberdade dá longevidade ao amor. Tal como manifesto por Malatesta no texto “Amor e anarquia”, do livro Socialismo e anarquia, o personagem deseja que os “homens e mulheres possam amar-se e unir-se livremente apenas por amor, sem nenhuma violência legal, econômica ou física6.
Mas, continua Malatesta,

[...] a liberdade, mesmo sendo a única solução que podemos e devemos oferecer, não resolve radicalmente o problema, pois o amor, para satisfazer-se, tem necessidade de duas liberdades que concordam e que frequentemente discordam; e deve-se levar em conta que a liberdade de fazer o que se quer é uma frase desprovida de sentido quando não se sabe o que se querer. (Malatesta, Amor e anarquia)

Esse descompasso de duas liberdades, esse recorrente dilema que gravita entre o domínio da alma e do corpo de outrem e a liberdade dos sentimentos é vivenciada também pelo personagem de Raul Seixas. Ele diz: 

[...]
Quando eu te escolhi
Para morar junto de mim
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi que além de dois existem mais
Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te libertar
O que é que eu quero
Se eu te privo
Do que eu mais venero
Que é a beleza de deitar
(Raul Seixas. A maçã, Novo Aeon, 1975)

Quinta máscara: aposentado indignado
Essa é a voz de um cidadão aposentado que, desde a juventude, veio tropeçando nos modelos pré-estabelecidos de vida. Desconfiava dos costumes aceitos e até estimulados pelo seu ambiente cultural. Quando jovem, planejava se comunicar com ‘seres vindo do espaço’, porém, antes mesmo que a empreitada fosse realizada, sua garota lhe deu a seguinte notícia: ‘você vai ver tudo no cinema’. Indignado, o homem argumenta: ‘e onde está a vida?’, ‘cadê a experiência?’, ‘querem trocar minha vivência em nome da ciência?’, ‘e a minha independência?’.
E eis que a vida passa e o homem medita a respeito de sua história:

Durante a vida inteira eu trabalhei pra me aposentar
Paguei seguro de vida para morrer sem me aporrinhar
Depois de tanto esforço patrão me deu caneta de ouro
Dizendo enfia no bolso e vá se virar
Tá na hora da velhice
Tá na hora de deitar
Tá na hora da cadeira de balanço, do pijama, do remédio pra tomar
Oh! Divina providência (ência)
E a minha independência
Ah! E minha vida
E minha vida! Onde é que está
(Raul Seixas. Tá na hora, Mata virgem, 1978)
Além das máscaras que Raul criou para os emissores de opiniões, há também as que cobrem a face de seus personagens-destinatários.

Primeira mensagem: para um operário cabisbaixo
Nesse bolero, Raul manda seu recado a um trabalhador, um operário cabisbaixo que ao voltar do trabalho carrega uma expressão triste, pesarosa. Reclama da vida, do marasmo de seu casamento, do salário, do tédio. O cantor, companheiro de boteco, dedica-lhe uma canção:

Você alguma vez se perguntou por quê
Faz sempre aquelas mesmas coisas sem gostar
Mas você faz, sem saber por que, você faz
E a vida é curta
Por que deixar que o mundo
Lhe acorrente os pés
Fingir que é normal estar insatisfeito
Será direito o que você faz com você
Por que você faz isso, por quê
Detesta o patrão no emprego
Sem ver que o patrão sempre esteve em você
E dorme com a esposa por quem já não sente amor
Será que é medo
Por quê? Você faz isso com você
Por que você não pára um pouco de fingir
E rasga esse uniforme que você não quer
Mas você não quer, prefere dormir e não ver
Por que você faz isso, por quê
[...]
(Raul Seixas. Você, O dia em que a Terra parou, 1978)

Segunda mensagem: para a morte
Trágico, o poeta consciente de sua efemeridade, imagina a morte. Quando ela virá? Será bela? Será boa? Será súbita ou lenta? Não, ele não a teme. É-lhe inevitável, ‘talvez o segredo dessa vida’, por quem ele clama: ‘vem, mas demore a chegar, eu te detesto e amo’. E vibrante, o poeta convida a morte para dançar um tango:

[...]
Vou te encontrar vestida de cetim
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
[...]
Oh morte, tu que és tão forte
Que matas o gato, o rato e o homem
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite
(Raul Seixas. Canto para a minha morte, Há dez mil anos atrás, 1976)

Terceira mensagem: para os que se ocupam em criar explicações ‘coerentes’ para a vida
“Esqueça”, diz o personagem de Raul, “nenhuma explicação poderá ser coerente com a vida”. E o problema, caros, não é humano, não é linguístico. O fato é que a vida, a vida mesmo, a vida real, ela não é nada coerente, não conhece formas nem conceitos, não se deixa calcular nem decifrar. O recado, nessa música, vai para os grandes teóricos da vida, os criadores de conceitos, os grandes metafísicos: religiosos, filósofos e cientistas.

Não me pergunte por quê
Quem, como, onde, qual, quando, o quê
Deus, Buda, o tudo, o nada, o ocaso, o cosmo
Como o cosmonauta busca o nado, o nada
Seja lá o que for, já é
Não me obrigue a comer
O seu escreveu não leu
Papai mordeu a cabeça
Do Dr. Sugismundo
Porque sem querer cantou de galo
Cada cabeça é um mundo Gismundo
Antes de ler o livro que o guru lhe deu
Você tem que escrever o seu
Chega um ponto que eu sinto que eu pressinto
Lá dentro, não do corpo, mas lá dentro-fora
No coração e no sol, no meu peito eu sinto
Na estrela, na testa, eu farejo em todo o universo
Que eu tô vivo
Que eu tô vivo
Que eu tô vivo, vivo, vivo como uma rocha
E eu não pergunto
Porque eu já sei que a vida não é uma resposta
E se eu aconteço aqui se deve ao fato de eu simplesmente ser
Se deve ao fato de eu simplesmente
Mas todo mundo explica
Explica, Freud, o padre explica
Krishnamurti tá vendendo a explicação na livraria, que lhe faz à prestação
E tem Platão que explica, que explica tudo tão bem, vai lá que
Todo mundo explica
Protestante, o auto-falante, o zen-budismo
Brahma, Skol, Capitalismo oculta um cofre de fá, fé, fi, finalismo
Hare Krishna dando a dica
Enquanto aquele papagaio curupaca e implica
Com o carimbo positivo da ciência que aprova e classifica
O que é que a ciência tem
Tem lápis de calcular
Que mais que a ciência tem
Borracha pra depois apagar
Você já foi ao espelho, nego
Não
Então vá
(Raul Seixas. Todo mundo explica, Mata virgem, 1978)

Mas alguém na plateia poderia se levantar e argumentar: o que é então a verdade, sr. mascarado, se todas as explicações não passam de meras explicações? A verdade, ele diria, é uma ilusão linguística: “[...] metáfora, metonímia e antropomorfismo, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias [...]”7. Ao sondar a verdade, ao tentar entender os motivos que levam o homem a criar essa construção “[...] tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, firme a ponto de não ser espedaçada pelo sopro de cada vento”8, fica evidente a habilidade humana em elaborar conceitos complexos. Porém, a verdade, esse “domo conceitual infinitamente complicado”, é linguagem humana e, como tal, não há mistério algum em, ao procurá-la “[...] no interior do distrito da razão”, ali encontrá-la9.

[...] Se forjo a definição de animal mamífero e em seguida declaro, depois de inspecionar um camelo: “Vejam, um animal mamífero”, com isso decerto uma verdade é trazida à luz, mas ela é de valor limitado, quero dizer, é cabalmente antropomórfica e não contém um único ponto que seja “verdadeiro em si”, efetivo e universalmente válido, sem levar em conta o homem. (Nietzsche, Sobre verdade e mentira, p. 50).
“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante”

Gostaria de encerrar mais esse ato do teatro de máscaras de Raul Seixas com uma espécie de imagem-símbolo: a metamorfose ambulante.

[Experimentação, vivência, coração, intuição, liberdade, vida como um palco, ópera rock-vida]

Prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Eu quero dizer
Agora, o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator
[...]
(Raul Seixas. Metamorfose ambulante, Krig-Ha, Bandolo!, 1973)


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1. Nietzsche, Genealogia da Moral, p. 90-1.
2. Referências às músicas: D.D.I., Judas, Rock do Diabo, Segredo da luz, A maça, Eu sou egoísta, Sapato 36, Tá na hora (entre outras).
3. Referências às músicas: Você, Babilina, Quando você crescer, Canto para minha morte, Medo da chuva, Teddy boy, rock e brilhantina e Todo mundo explica.
4. Nietzsche. Gaia Ciência, [78, II], p. 106.
5. As informações a respeito da descoberta do manuscrito foram obtidas em artigo publicado pela Folha de São Paulo em seis de abril de 2006. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u59432.shtml. Acessado em: 31/10/2010.
6. Malatesta. “Amor e anarquia”. In: Socialismo e anarquia.
7. Nietzsche. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, p.48.
8. Idem, p. 49.
9. Idem, p. 50.
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Referências bibliográficas

Malatesta, Errico. “Amor e anarquia”. In: Socialismo e anarquia. Trad. Edson Passetti. Disponível em: http://www.arteeanarquia.xpg.com.br/amor_e_anarquia.htm. Acessado em 01/11/2010.

Nietzsche, Friedrich. Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, [78, II], p. 106.

__________. “Terceira dissertação: O que significam os ideias ascéticos”. In: Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 87-149.

__________. “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”. In: Os pensadores: obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. 2 ed. São Paulo: Abril, 1978, p. 43-52.

Referências videográficas
Raul Seixas entrevistado por Marília Gabriela, 1983. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=epvSo2gT7iw. Acessado em 30/10/2010.

Clipe da música Judas, 1979. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=mCjGac2vQBI. Acessado em 01/11/2010.

Crédito

Os personagens de Raul foi originalmente publicado no capítulo "Poéticas sonoras: Estação Raul" em Cartografias da voz: poesia oral e sonora; tradição e vanguarda. Livro organizado por Felipe Grüne Ewald, Frederico Fernandes, e outros. Recebeu financiamento da Fundação Araucária e foi editado pela Letra e voz. São Paulo, 2011, p. 222-247.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

paisagem da janela... do carro

vai passarinho
vive a vida livre
da jaula de quem
aprecia seu canto

voa passarinho
pelos campos e matas
onde a liberdade não é 
chavão de gente confinada

quem ouve? quem houve?

quem ouve? quem houve?