quarta-feira, 19 de setembro de 2012

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

preparativos para as viagens historiográficas

Quando viajo de trem, gosto de observar a paisagem que vai passando. Ou seria melhor dizer que gosto de observar a paisagem que vai ficando, pois quem passa é o trem, sou eu, que ocupo um lugar em um de seus vagões, é o tempo. Tempo para observar a paisagem. Corre o trem, pairam os pensamentos. Conforme o trajeto é percorrido o ambiente muda e os elementos de minha observação se transformam: outros tipos de árvores, variados grupos de pássaros, rios de diversos tamanhos e profundidade, plantações, variação climática, do solo. Ao recepcionar com os meus sentidos toda essa diversidade do mundo que vai passando, percebo, também com os meus sentidos, que em mim algo se metamorfoseia e, assim como Teleco, o coelhinho de Murilo Rubião, encarno o mito grego de Proteu, com a diferença que de dentro do trem não posso prever o futuro. Nem mesmo consertar o passado.
*
A viagem como metáfora para descrever o percurso de uma pesquisa é bastante apropriada, pois tanto a primeira quanto a segunda apresentam três variantes constantes: o tempo, a distância e a vivência. Quando uma pessoa faz uma viagem, ela percorre um determinado trajeto durante um determinado tempo. Isso também acontece com uma pesquisa. Para começar o trabalho, o pesquisador escolhe o local de onde dará início a sua viagem, ou seja, elabora a sua questão primordial, seleciona seu ponto de partida. Assim ele faz, porém, diferentemente do viajante, sem sequer imaginar onde e quando chegará ao seu destino. Conforme trilha os caminhos da pesquisa, o historiador presencia também a transformação que vai se operando nos elementos da paisagem.
No caso de uma investigação historiográfica, os elementos da paisagem são metáforas para as fontes históricas. Cada livro, cada filme, cada imagem, enfim, cada objeto cultural que chega às mãos do pesquisador e passa por sua leitura interage com ele, modifica-o e, além disso, torna-se mais um elemento que forma o percurso da pesquisa, mais um estímulo na composição de sua vivência. Em cada caminho, uma árvore, em cada fonte, uma referência ao passado. A imagem que o viajante vê da janela do trem é fugidia, assim também é provisória a verdade linguística a respeito do passado a que chega o historiador. Se a viagem é uma metáfora para a pesquisa e os elementos da paisagem para as fontes, o trem é uma metáfora para a vida. O viajante está onde está o trem, portanto, ele só pode ver aquilo que passa, a cada momento, por sua janela. Ele não vê mais o que passou nem vê ainda o que virá. No entanto, pode lembrar-se do que viu e imaginar o que chegará. Assim também ocorre com o historiador que, inserido em seu tempo presente, não pode decifrar o passado nem prever o futuro. Entretanto, pode se ocupar das memórias do que já foi e vislumbrar, com sua imaginação histórica, tanto um (passado) quanto outro (futuro).
O historiador está onde está a vida, do presente não pode escapar. Basta-lhe, por isso, escancarar sua janela para o instante e, inspirado e guiado por uma experiência artística de vida, elaborar uma descrição autêntica sobre o passado a partir de sua imaginação histórica. Porque a verdade da história, disse sabiamente o greco-moderno Johann Goethe, não passa de uma “verdade subjetiva”. Por criar o mundo de acordo com sua própria ideia, o historiador-artista poderá “[...] representá-lo perfeita e completamente”, não precisará se ocupar em “[...] construir o seu mundo de tal forma que caibam todos os fragmentos que a história nos transmitiu [...]”, pois tal narrativa objetiva não passará de um heróico esforço de pesquisa, compilação, emenda e cola de acontecimentos. (GOETHE apud WERNET, 1980: p. 148-9)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

mineirando os textos de meu avô

com a licença dos meus primos célio e george,
protagonistas da história a seguir,
publico uma poesia bastante espirituosa
da pena de célio r. siqueira.

uma pena ela não estar datada, 
mas os referidos primos
talvez possam dar algumas dicas:





para facilitar a leitura de quem não se entede
com manuscritos antigos,
transcrevo o texto:

"Conversa Ociosa"
Célio R. Siqueira

Primeiro de janeiro, final de almoço familiar no Restaurante La Mama, num canto da cidade, junto à Galdino. Do grupo, bem alimentado, destacava-se a loquacidade dos netos varões, filhos da filha mais velha. O lugar e o momento são propícios a um papo inconsequente. Alguma coisa ali me traz à lembrança uns versos de Olegário Mariano:

"Num remanso bucólico e sombrio
Onde atenua a marcha a grande rio,
À sombra de recursos ingazeiras, 
Batem roupa, contando, as lavadeiras.
Trago ainda nos olhos, é bem ela, 
A paisagem do Poço da Panela."

Naquela hora, as árvores sonolentas do Parque Dona Cota, indiferentes à pachorra indolente da Avenida curtindo um feriado universal, me induzem a aceitar o desafio que me fazem os dois promissores rebentos que se oferecem a cooperar na aventura. E foi assim que se fez, numa mesa de restaurante, a irreverência que aí vai e que resolvi chamar de 

"Conversa quase ociosa"

E se eu me for este ano, 
Não se iluda, foi engano.
Só tresloucado insano
Apaga o pernambucano.

E se neste ano eu me for
E não atender ao doutor
Que insiste para eu ficar:
"Com pouco vai melhorar."

E se eu me for nesses dias, 
Quem vai revirar o escritório,
Se Ela, com suas manias, 
Fez dele seu território?

E se eu me for de uma vez,
Quem se alegrará ao ouvir
A saudação tão cortês
E livre do bem-te-vi?

Quem vai caminhar na Galdino?
Quem ouvirá o Altemar?
Quem com cara de menino 
Vai querer me perguntar
Se banzai vem de banzar,
Não vem, banzar é pensar,
Banzai, escutai meus manos,
Quer dizer: "Dez mil anos",
Um desejo sem mais danos.

— Quem vai dormir assistindo
Ao Jornal Nacional?

E se este ano eu me for,
Quem suspenderá o labor
Para ouvir embevecido
Algum sabiá desvalido?

Mas haverá, com certeza,
Quem sorverá com presteza
O uisque que não bebi,
A Brama que não sorvi.

E então, sem prolegômeno,
Mais parecendo um fenômeno
Eu me for de vez prá lá,
Quem, como eu, vai esperar
"El dia que me quieras"
Que o Iglésias vai cantar?

Mas se os Skanks eu ouvir
E me puser a repetir
Os versos de meu agrado,
Olhando d'Ela o seu jeito
De ir, de vir, de ficar
Desisto do meu projeto
Prefiro continuar.
E canto a plenos pulmões,
Aos povos e às nações:

"Te ver e não te querer,
É improvável, é impossível...
Te ver e ter de esquecer
É improvável, dor incrível..."
ETC...

domingo, 5 de agosto de 2012

altura relativa

a beleza das árvores de espécies diferentes
e a insignificância da espécie humana!
*
quantos deles seriam necessários para que,
juntos,
chegassem à altura da araucária?
*

quinta-feira, 21 de junho de 2012

de Manuel Bandeira

Céu
 
“A criança olha
Para o céu azul.
Levanta a mãozinha,
Quer tocar o céu.
Não sente a criança
Que o céu é ilusão:
Crê que o não alcança,
Quando o tem na mão.”

quinta-feira, 24 de maio de 2012

londrina no calçadão

h2o na flor

a fuga da rima

justo hoje, no dia em que eu queria escrever uma poesia, a rima fugiu de casa.
saiu cedo, disse que voltava logo, mas ainda não apareceu.
vai ver encontrou algum trovador que com sua lira cantava os mistérios do amor,
quem sabe esbarrou numa guria que encantada com as cores vivas do dia 
dizia poesias em forma de bolhas de sabão,
pode ser ainda que tenha se cansado de sentimentalismos 
e aproveitado o domingo para encher a cara num bar qualquer.
eu permaneço aqui, espero ansiosa pela sua volta, o retorno da minha inspiração.
enquanto isso, vou jogando palavras no papel.
aleatoriamente. quem sabe de repente o vento muda a direção e traz de volta as 
rimas da poesia que justo hoje eu queria escrever.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

A Bela Alma dos “Anos de aprendizado de Wilhelm Meister”: uma narrativa mimética

Preâmbulo

O texto a seguir é uma narrativa histórico-ficcional intitulada Exercício Narrativo: Confissões de uma bela alma. Explico. “Confissões de uma Bela Alma” é o subtítulo do Livro VI do clássico romance de formação de Johann Wolfgang von Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Essas confissões, apesar de apresentadas em meio ao texto ficcional, foram escritas por uma pessoa que de fato existiu. Susanna Katharina von Klettenberg era parente e amiga da família de Goethe, seus escritos foram reunidos e publicados em 1912 sob o título A bela alma: confissões, escritos e cartas de Susanna Katharina von Klettenberg1. O texto apresentado por Goethe é, assim, baseado nessas confissões, uma versão romanceada das reflexões pietistas de Susanna e das conversas que porventura ele teve com ela. Conta-se que durante um período de sua vida, na época em que se encontrava em Frankfurt curando-se de uma tuberculose, Susanna foi-lhe uma importante interlocutora. O trabalho historiográfico que ora apresento, por sua vez, procura manter tal caráter romanceado. De que maneira? Por meio de suposições imaginativas baseadas em fontes históricas que vão se somando ao texto de Goethe. Apresento, ao longo do texto, uma série de fontes que localizam o cenário histórico em que viveu Susanna e procuro aproximar tal cenário do possível imaginário da confessora. Para diferenciar minhas falas dos trechos literais de Goethe utilizo aspas sempre que recorro à citação, além de inserir o respectivo número de página. O travessão (—), além disso, indica mudança de voz narrativa.

Exercício Narrativo: Confissões de uma bela alma

— Bela2 era bela. À sua maneira, mas era. Lembro-me do dia em que se deu conta disso. O desentendimento de Narciso3 com o capitão, seu vizinho, resultara em ferimentos graves nas costas e na cabeça de seu amigo. Ela, aflita com a quantidade de sangue que jorrava dele, não sabia o que fazer. Precisava de ajuda, mas tinha medo de abandoná-lo só. Aguardara alguns minutos até que a filha do dono da casa aparecesse para perguntar se estava tudo bem. 

— Na realidade, disse Bela, sua vinda não me acalmou muito. Já estava bêbada e “ria-se às gargalhadas daquele absurdo espetáculo e daquela maldita comédia. Roguei-lhe insistentemente que mandasse chamar um cirurgião, mas, obedecendo à sua selvagem natureza, desceu correndo as escadas para ir ela mesma à procura de um.” (p. 356).

— Algum tempo depois chegou o médico. Bela foi convidada pela dona da casa para que a acompanhasse até seu quarto de dormir, onde poderia se limpar e trocar suas roupas. O quarto era pequeno, cheirava a sândalo, tinha uma atmosfera morna. Em frente à porta, um espelho. A dona da casa trouxe-lhe toalha, bacia com água e roupa limpa. De repente viu-se sozinha no cômodo mais íntimo da casa de pessoas desconhecidas4. Limpou o sangue de seu rosto e dos braços, tirou suas vestes, limpou seu corpo. Nesse momento, mirou-se casualmente no espelho. De repente, era como se nunca tivesse existido, como se estivesse vendo seu corpo pela primeira vez. Como se aquele corpo refletido no espelho fosse de outra pessoa, o corpo de uma mulher, um belo corpo de mulher5

— Sim, pensou, “mesmo sem vestes posso me considerar bonita.” (p. 357).

— Para mim, Bela era muito mais bela sem vestes. Ficava ainda mais natural. Mas, não me encantei por ela apenas por sua beleza aparente, mesmo porque essa não era a maneira como ela mais gostava de ser notada. A imagem preferida que fazia de si era a do caracol que se recolhe à sua concha. Para encantar seu mundo, Bela não lançava mão de sua beleza, mas de seu pensamento.
Foram poucas as vezes que olhou seu corpo, assim..., como naquele dia. Talvez tivesse vergonha de si, talvez receio de desejar-se, quem sabe até medo de que alguém a pudesse ver. Tratava-o como a um santuário delicado e valioso, guardava-o vigilante, impedindo-o de ser profanado. Desde cedo, porém, mostrou-se dona de um organismo extremamente frágil. Aos oito anos, foi acometida de uma moléstia grave nos pulmões. A tuberculose, que na época nem era chamada por esse nome, altamente contagiosa, não tinha remédio. O repouso e o isolamento social devido à doença se tornaram parte do cotidiano de muitas pessoas em várias regiões da Europa. Outras tantas foram parar em leitos de hospitais e sanatórios e milhares foram vítimas fatais. Bela passou nove meses guardando repouso. Durante esse tempo, como não podia fazer atividades físicas, se ocupava brincando com bonecas e decifrando livros ilustrados. Também ouvia histórias: sua mãe costumava lançar mão da pedagogia bíblica, sua tia se encarregava das histórias de amor e dos contos de fada e seu pai apresentava-lhe, de maneira bastante envolvente, a história natural. Era dono de um agradável gabinete onde realizava inventários botânicos: dissecava plantas e insetos, fazia análises anatômicas de tecidos e órgãos animais e vegetais. Nessas ocasiões, ele passava horas explicando-lhe detalhadamente os experimentos e jamais se incomodava em responder às suas perguntas. Bela se encantava com a sabedoria do pai, admirava-o profundamente e respeitava-o com todo o seu amor. Com ele aprendeu a valorizar o conhecimento científico e a organizar seu pensamento lógico.

— A terrível e dolorosa experiência da enfermidade trouxe-me um mundo até então pouco conhecido. Descobri o mundo das palavras. Encantei-me por ele. Nesse momento, “pareceu-me haver-se implantado o alicerce de todo meu modo de pensar, ao mesmo tempo em que se ofereciam a meu espírito os primeiros expedientes para que se desenvolvesse a seu próprio modo.” (p. 347). Passei a nutrir intenso amor pelas leituras bíblicas e grande interesse pelo conhecimento. Além disso, “me imaginava em belos trajes indo ao encontro dos mais adoráveis príncipes, que não haviam de ter paz nem sossego enquanto não descobrissem a origem daquela bela desconhecida.” (p. 348).

— Quando estava com cerca de doze anos fez seus primeiros amigos fora de seu ambiente familiar. Uma vez, ao participar de uma apresentação promovida pelo professor de dança, conheceu os filhos de um marquês da corte que despertaram seu interesse. Eles se tornaram amigos e acabaram enamorando-se. Bela ficou preocupada, pensava que não podia continuar aquele tipo de relacionamento. Teria que escolher um deles. A decisão era difícil e ocupou por muitos dias o pensamento de nossa amiga. Enquanto isso, o mais velho deles adoeceu e, coincidência ou não, Bela acabou optando por ele. A enfermidade os aproximou. Como ela já havia se adoentado outras tantas vezes, sabia como proceder com uma pessoa enferma. Contava-lhe histórias, distraia-o com leituras, enviava-lhe presentes e doces. Envolvia-se cada vez mais com ele e, então, começou a dar pistas de sua paixão. Durante as aulas de francês, nos momentos em que o professor lhe pedia para praticar a escrita, Bela compunha poemas e cartas endereçadas ao garoto, derretia-se. Seu tutor, percebendo a situação, julgou ser adequado chamar-lhe a atenção para os perigos da paixão. Disse-lhe para ficar atenta e não cair em tentação. Ela odiava essas conversas, não achava que devia se abrir com ele, principalmente porque percebia seu preconceito em relação às mulheres, julgava-as frágeis e facilmente enganáveis. Irritava-a ser comparada com tais mulheres, julgava-se muito diferente.

— Minhas paixões, costumava dizer, “tinham sobre mim o efeito de me fazer silenciosa e me retrair das alegrias delirantes. Vivia solitária e comovida, e voltei a pensar em Deus.” (p. 352).

— A paixão por Damon, o filho mais velho do marquês, não permaneceu por muito tempo. Meses depois ele acabou morrendo, bem como seu irmão. No entanto, as inúmeras exortações do professor de francês ganharam espaço em seu coração, pois ela começou a achar que talvez ele tivesse razão.
Por aquela época, a corte estava em polvorosa. O príncipe herdeiro, que comemorava suas bodas, estava na região. Viera também assumir o trono, pois o rei havia morrido. Bela, que na ocasião fora apresentada à corte, ficou deslumbrada. Havia apresentações de teatro, de música, bailes e caçadas. Ela se divertia muito, participava das festas, dos saraus, dançava nos bailes, conhecia os rapazes e as moças de locais distantes. Em meio a toda essa sociabilidade, acreditou ter encontrado a chance para provar ao tutor que nem todas as mulheres eram frágeis e fracas de espírito, que ela, ao menos, não era, e que podia muito bem resistir às tentações do corpo. Não se deixaria ser alvo das flechas zombeteiras daqueles cortesãos belos, ricos e bem vestidos, porém, libertinos e repulsivos que empreendiam conversas dispensáveis e inúteis, que podiam, achava, fazer mal não só à sua virtude, como também à sua saúde. Fez um pacto consigo mesma: jurou que nunca se relacionaria intimamente com qualquer homem até que fosse chegada a hora e, assim, provaria ser forte, sincera e honesta. Guardaria seu santuário intocado até o casamento. Não deixaria que a considerassem uma mulher fraca.
Pobre Bela, não percebeu jamais a relação entre essa atitude ascética e a debilidade crônica de seu corpo. Mesmo canalizando suas energias sexuais e dando vazão à parte delas nos planos religioso e intelectual, a falta de fluidez física de suas paixões envenenou seu corpo. Bela envenenou-se aos poucos.
E foi então que veio Narciso, o belo e presunçoso Narciso. E em Bela encontrou Eco. E ela já não era aquela menina sonhadora da época em que a tia lhe contava fábulas de príncipes encantados. Na realidade, chegava a ficar levemente surpreendida com as investidas dos rapazes, especialmente de um Narciso, cuja beleza encantava jovens da Grécia inteira e as belas ninfas por ele se apaixonavam.

— “Num grande baile, ao qual também ele compareceu, dançamos juntos um minueto, mas tudo se passou sem que tivéssemos estreitado nossa amizade. Quando começaram as danças mais animadas, que eu procurava evitar em atenção ao meu pai, preocupado com minha saúde, dirigi-me a um dos cômodos contíguos onde me pus a conversar com amigas mais velhas, que estavam jogando.” (p. 354).

— E pensava, radiante:

— Ele preferiu ficar comigo e conversar a dançar e se divertir com as demais! Oh! Como estou feliz. Como sou feliz!

— Às vezes, e durante esses dias muitas vezes, ela esboçava um leve sorriso em frente ao espelho. Era o máximo de energia sensual que fluía pelo seu corpo. Em uma ocasião, porém, Bela quase experimentou novas sensações. No entanto, recuou a tempo.
Passara a manhã na biblioteca do pai pesquisando a respeito do sistema reprodutor humano. Reparara que muito se falava a respeito do aparelho genital masculino, porém, em relação ao feminino, quase nada se dizia. Os gregos Hierófilo e Sorano de Éfeso haviam sido responsáveis pelos trabalhos mais importantes sobre a anatomia feminina, mas, ora vejam, isso no século IV a.C.! Falópio estudou e descreveu os órgãos genitais femininos e fez a primeira laqueadura da história, porém, em meados do século XVI! Bela percebera também que muitos autores contemporâneos seus diziam que o aparelho genital feminino era “quase” como o do homem, porém, invertido para alguns, inacabado para outros. Ela entendia que homens e mulheres eram diferentes, sentia essa diferença em suas relações e não duvidava disso...

— Homens e mulheres foram feitos assim porque assim Deus desejou.

— No entanto, não acreditava que o estudo do aparelho reprodutor masculino daria conta de explicar o seu..., e revoltava-se com a desonestidade dos cientistas que a respeito da natureza feminina apresentavam hipóteses como se fossem verdades.

— Os homens da ciência costumam dar sustentação aos seus diagnósticos e leis baseando-se na análise clínica e anatômica, no entanto, no caso feminino, os médicos costumam ter como suporte apenas a análise anatômica de defuntos e uma série de analogias com o corpo masculino. Como pretendem entender a vida observando a morte, como pretendem entender a mulher analisando o homem?

— Estava, então, decidida. Experimentaria sentir seus órgãos genitais a fim de conhecê-los melhor. Tinha muito interesse pela história natural para se dar ao direito de ter esse pudor. Naquele dia, na hora do banho, passou o ferrolho na porta do lavatório. Despiu-se em frente ao espelho e, só depois de ficar completamente nua, procurou ver-se. Por muito pouco não desistiu.

— Mas..., e a ciência, o conhecimento...

— Continuou olhando-se no espelho, prendeu seus cabelos, lavou bem suas mãos e, por alguns segundos, não sabia o que fazer. Respirou fundo. Colocou as mãos na parte lateral das coxas, escorregou-as para frente até se encontrarem sobre os pêlos pubianos. Com a mão direita, tentou abrir caminho para a mão esquerda encontrar o túnel por onde saem os filhos e por onde, diziam, as mulheres davam extremo prazer aos homens. Lembrou-se da conversa que tivera na noite anterior com as amigas do jogo. Algumas das mulheres afirmaram que sentiam extremo prazer quando faziam sexo. Outras, mais resignadas, disseram que às vezes sentiam prazer e até gostavam quando o marido dava um beijinho, mas isso, alguém disse, foi mais no começo do casamento, depois, só por obrigação mesmo. Entretanto, os relatos que deixaram Bela mais impressionada foram daquelas mulheres que juraram nunca, nunca ter gostado de sexo. ‘Se não tivesse que ter filhos, disse uma senhora, não faria’. Na ocasião, Bela perguntou se o esposo não ficava zangado com ela? ‘Claro que não, meu bem, ele tem tantas outras possibilidades de prazer sexual. Porque teria que querer fazer sexo comigo? Sou apenas sua esposa’.
Mas voltemos à Bela, pelada no banheiro. Agora suas mãos passeavam superficialmente sobre sua vulva. Parou bruscamente, ouvia vozes no corredor. Era sua mãe. Procurou ficar em silêncio, mas estava ofegante. Minutos depois, percebeu que ela já havia se retirado. Olhou para o espelho, suas mãos tremiam. Ela pensava: tenho de conseguir, como poderei ser uma pessoa culta, conhecedora do corpo humano e da história natural se não conheço meu próprio corpo? Olhou para o lado, resolveu sentar-se na poltrona. Com a mão esquerda, segurou o espelho de mão, posicionou-o em frente ao seu joelho, abriu as pernas e, com a mão direita, examinou-se, viu a entrada do túnel, os grandes lábios, o que deveria ser a região descrita por Falópio, o tal clitóris...

— Se bem que meus lábios são tão pequenos.

— Terminado o exame ficou muito contente com a utilidade do espelho. Percebera que enquanto se examinava sem ver sentia sensações esquisitas, calores repentinos... A visão a guiara. Concentrada no espelho, na imagem refletida, pôde observar-se, conhecer-se melhor sem correr o risco de pecar.
Coincidência ou não, naquela tarde, Bela e suas irmãs tinham aula de francês. A atividade sugerida pelo professor era que elas realizassem individualmente a tradução de alguns trechos de Les Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne6, tecessem breves comentários a respeito daquelas regras e, por fim, comentasse oralmente suas conclusões. A parte sob responsabilidade de Bela dizia o seguinte:

Faz parte do decoro e do pudor cobrir as partes do corpo, com exceção da cabeça e das mãos. Deve-se tomar cuidado para não tocar com as mãos nuas qualquer parte do corpo que não é habitualmente deixada descoberta. E se for obrigado a assim proceder, isto deve ser feito com grande cautela. Você precisa acostumar-se ao sofrimento e ao desconforto sem se contorcer, esfregar-se ou coçar-se...
É muito mais contrário à decência e à propriedade tocar ou ver em outra pessoa, principalmente do sexo oposto, aquilo que os Céus proíbem que você olhe em si mesmo. [...]
Não é nunca correto referir-se a partes do corpo que devem ficar cobertas nem de certas necessidades corporais a que a Natureza nos sujeitou, nem mesmo mencioná-las7.

Por certo Bela enrubesceu, mas ninguém notou. Ela terminara a tradução primeiro que as outras, pois era muito hábil no francês, e enquanto isso pensou no que iria falar. Tinha receio de entregar-se, não podia vacilar. Ao reler sua tradução, contudo, encontrou as respostas necessárias. Na hora do debate, Bela leu o texto nas duas línguas e teceu seus comentários:

— Considero apropriada a discussão que traz esse texto a respeito do pudor em relação ao corpo. Por certo devemos ter cautela. Nessa manhã, enquanto pesquisava sobre o sistema reprodutor em uma das enciclopédias de meu pai, entendi a utilidade dos espelhos para o auto-exame físico. Quando a necessidade nos pedir para que toquemos nosso corpo, creio que a utilização do espelho como instrumento-guia é imprescindível. A visão nos guia por um caminho objetivo e não nos abandona à mercê da correnteza táctil. Creio que de todas as sensações, a visão seja a mais objetiva. O fato de ela revelar nossos corpos objetivamente inibe nossa imaginação e nos possibilita conhecer nossa anatomia sem hesitação.

— Fez-se um silêncio constrangedor.

— Perdão, querido mestre, exaltei-me. Mas compreenda. Aqui diz o seguinte: “Não é nunca correto referir-se a partes do corpo que devem ficar cobertas nem de certas necessidades corporais a que a Natureza nos sujeitou, nem mesmo mencioná-las”. Preocupa-me a possibilidade de todo esse pudor dificultar o trabalho científico no que diz respeito ao desvendamento dos mistérios do corpo humano, especialmente do corpo feminino. A medicina precisa se desenvolver. A medicina do corpo feminino também. Para isso é necessário que os homens da ciência conheçam esse corpo. Caro mestre, em minha casa, o senhor bem sabe, há um laboratório de anatomia onde meu pai estuda partes do corpo humano, disseca animais e plantas. Andei pensando que não é possível conhecer a vida do animal, da planta ou do ser humano se eles já estão mortos!

— Novamente Bela se alongou demais. Quando percebeu, já era tarde. O tutor achou melhor dispensar as alunas e acabou não respondendo aos seus comentários. Sentiu-se bastante aliviada, pois pensou que poderia ter se comprometido ainda mais caso tivesse que contra-argumentar os comentários do professor.
Mas... e Narciso. Pois bem, ele havia chegado à cidade na época em que a corte ainda estava lá. Era francês, muito inteligente e bem relacionado. Com facilidade aproximou-se dos homens ilustres da sociedade local e, em pouco tempo, frequentava a casa de Bela. Ele se dava bem com todos, especialmente com sua irmã mais nova, que era muito graciosa, porém, já estava comprometida com outro rapaz e via-se na obrigação de repeli-lo. Narciso, então, se aproximou de Bela. Eles conversavam sobre todos os assuntos.

— O rapaz, disse, “sempre estivera presente na melhor sociedade, além de sua especialização em história e política, que omitia por completo, possuía um vastíssimo conhecimento literário, e não havia novidade que lhe fosse desconhecida, sobretudo o que quer que ocorresse na França”. (p. 355).

— Que oportunidade fabulosa, pensava Bela. Narciso, Nárkissos, a beleza que entorpece. Gostava de conversar com ele porque ele não censurava seus devaneios filosóficos, seus planos secretos para consertar o mundo, sua maneira de explicar a alma humana. Podia falar, narcotizar-se com as palavras.

— “Trazia-me e enviava-me muitos livros atraentes, mas este era um assunto que deveríamos manter em segredo, mais do que se fosse uma proibida relação amorosa”. (p. 355). Que sociedade hipócrita, pensava, pois se uma relação amorosa pode ser muito mais maléfica para meu espírito e para meu corpo do que uma relação intelectual!

— Nessas horas lembrava-se do juramento que havia feito: mostrar em vida que a fraqueza de caráter não é da natureza da mulher. Nem todas as mulheres são susceptíveis à lábia dissimulada dos libertinos franceses. Ela, por certo, não era. E Bela começava a nutrir em sua alma um imenso desejo de subversão social individual. Não imaginava uma subversão feminina total, nem julgava isso conveniente. Nem todas as mulheres deveriam mesmo ter acesso a certos níveis de discussão, nem todos os assuntos deveriam ser da competência delas, certas hierarquias não deveriam ser quebradas. Em todos esses aspectos, Bela colocava-se tranquilamente como uma mulher. Não queria igualdade. Deus não os fez iguais, querer igualdade seria contrariar a natureza. Bela não queria contrariar a natureza. Ela queria liberdade de pensamento. As Sagradas Escrituras amparavam seus argumentos: ‘A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão.’8

 
— A Bíblia, dizia Bela, não diz que a mulher não deve aprender, mas, se ela o desejar, deve fazê-lo em silêncio, na intimidade do lar, em segredo, para não envergonhar tantos homens incultos que frequentam a sociedade. (p. 355).

— E o acaso agiu. E o desenrolar daquele fatídico episódio envolvendo Narciso e o capitão teve grande influência na vida sentimental de Bela. Narciso se comovera com a atitude de Bela junto a ele no leito de uma casa estranha. Percebera que seria uma esposa ideal. Instruída, fiel e bela. Em conversa com seu pai, Narciso se comprometera em pedir sua mão em casamento. Todavia, ela teve de esperar por quatro anos até que o pedido fosse feito. Durante esse tempo, imaginou as histórias mais felizes e românticas que poderia viver com seu amado, avivou na lembrança as histórias e contos de fada que sua tia contara e esperou por seu príncipe. Esperou por quatro longos anos. Nesse meio tempo, um turbilhão de emoções passou por ela. Bem que sua mãe aconselhara: “não se deve confiar demais naquilo que se diz num primeiro impulso.” (p. 358). Mas ela pouco pôde fazer para conter a esperança. A esperança a envenenou. Carcomeu seu coração.

— Voltei a lembrar-me de mim. “Minha alma recomeçou a se agitar; só a relação interrompida com o amigo invisível é que não foi assim tão fácil de restabelecer. Continuávamos sempre a uma certa distância; havia ali algo de novo entre nós, só que muito diferente do que era então.” (p. 358-9).

— Interessante é que sempre que Bela se voltava para si, voltava-se aos poucos também para seu amigo invisível. Dessa vez, porém, a reconciliação com ele foi mais lenta, no mesmo passo em que se dava seu distanciamento afetivo de Narciso. A paixão aplacara-se, simplesmente. Na primavera, ele viera fazer seu pedido. Prometera que assim que obtivesse uma posição honrosa e bem retribuída voltaria para levá-la com ele. (p. 359). Por conveniência, Bela disse que conversaria a respeito do assunto com seu pai e então daria uma resposta, contudo, ninguém duvidava quanto à sua aceitação. E o que para muitas mulheres seria o calvário, para ela foi o tempo necessário para que percebesse quão nociva para sua alma seria o casamento. Nos últimos anos de vida, Bela costumava falar que a época do noivado com Narciso foi para ela a comprovação de que “a ideia do matrimônio, sem dúvida, tem sempre algo de assustador para uma jovem medianamente esclarecida.” (p. 358).

— “Se existisse alguém que pudesse transformar em noivos os apaixonados de todas as jovens sensatas, esta seria uma grande obra a favor de nosso sexo, mesmo que dessas relações não resultasse casamento.” (p. 360).

— Pois, para Bela, além da experiência do noivado antecipar algumas vivências desgastantes da relação matrimonial, possibilitou-lhe sentir que o “natural” nesse tipo de relação era a transformação da mulher em uma serviçal do marido, ao passo que, para os demais, seria como uma “bonequinha enfeitada”. (p. 360).

— Para as mulheres fracas, por certo, o noivado é um inferno. Mas, para as fortes, um argumento: ‘sendo assim, preferimos não nos casar!’ Se a jovem tiver a “sorte de ter um noivo inteligente, poderá aprender com o noivado mais do que lhe poderiam ensinar universidades e países estranhos”. (p. 360). É parte do período de formação de uma jovem e “impõe sem demora a submissão tão necessária e conveniente ao sexo feminino; o noivo não domina como o marido; ele pede simplesmente, e sua amada busca adivinhar o que ele deseja, para realizá-lo antes mesmo que lhe peça.” (p. 360).

— Esses dois anos de noivado foram o deserto para Bela. Mas ela não percebia. Por conta da convicção de que o sexo deveria ser reservado ao casamento, e firme em sua promessa feita na época das aulas de francês, não percebia que seu ideal de vida envenenava-a. E envenenava também sua relação com Narciso. Ela sentia-se satisfeita com seus impulsos e emoções lendo livros, escrevendo poesias religiosas e conversando com o rapaz. Narciso sempre respeitou sua decisão e jamais tentou persuadi-la.

— “Só que, no tocante aos limites de virtude e da moral, éramos de opinião completamente diversa. Eu queria estar segura e não lhe permitia absolutamente nenhuma liberdade da qual o mundo inteiro não pudesse saber. Ele, habituado a guloseimas, achava rigorosa demais aquela dieta.” (p. 361).

— Eles acabaram se afastando, e Bela reatou relações com Deus. Queixava-se do comportamento de Narciso, considerava-o egoísta e fraco, mas não se dava conta de que desejava e cobiçava exatamente aquilo que a angustiava. Será que tinha medo, pavor, horror das relações sexuais? Ou uma curiosidade louca?

— Às vezes imaginava ser tudo muito dolorido, o sangue escorrendo pelas minhas pernas. Mas, às vezes, imaginava ser como flutuar sobre as nuvens. Mas não pedia para Deus livrar-me da tentação. Eu pensava nisso como se fossem fábulas, não tinha vontade de experimentar. Só na hora certa. Tornei-me uma velha. Nos saraus ficava ao lado das senhoras, acompanhando jogos entediantes. Fechei-me. Deus e eu.

— Narciso não sabia das relações entre Zeus e Eco, pelo menos era o que Bela pensava.

— E coincidentemente “dava-me às vezes para ler escritos que combatiam com armas leves e pesadas tudo que tivesse alguma relação com o que poderíamos chamar de o invisível. Lia os livros porque vinham dele, mas, ao terminar, não sabia uma só palavra do que continham”. (p. 362).

— Tinham suas diferenças quanto às ciências e aos conhecimentos. Narciso também gostava de zombar da formação feminina e julgava apropriado que a mulher mantivesse seus conhecimentos ocultos.
Mas, Bela..., Bela.

— “De uma forma inteiramente natural, cuidava de não me mostrar ante o mundo mais inteligente e mais instruída que de hábito.” (p. 363).

— Resignada, continuava à espera do casamento. A cada tentativa mal-sucedida de Narciso em conseguir um cargo na corte seu espírito se agitava, sofria, mas logo conformava-se à situação, como a areia se conforma ao recipiente em que é colocada e a água ao pote em que é despejada. Fechada em si, não se interessava por assuntos da casa, não conversava muito, afastou-se das irmãs.
Nessa época em que vivenciava um completo isolamento moral e social o rei estava na cidade com a corte. Barões, condes e marqueses do reino reunidos. Festas, musicais e teatros animavam a cidade. Bela e Narciso foram convidados para as festividades, o que significava uma ótima oportunidade para encontrar homens influentes. O conde, como bom anfitrião, iniciou o jantar saudando o príncipe e sua honrosa corte, bem como fazendo menção aos membros da intelligentsia burguesa que se encontravam presentes. Dedicou um brinde especial à jovem Bela, autora de uma excelente dissertação a respeito da virtude feminina. Tal manuscrito lhe chegara às mãos por obra de terceiros.

— Pois a senhorita, por ser uma pessoa extremamente consciente de suas limitações, sabe ocupar com grande dignidade o lugar que lhe é reservado na sociedade e não desejava sobrepor sua opinião à natureza. Muita sorte terá o jovem que se casar com tão nobre dama. Um brinde à virtude feminina.

— “Minha dissertação havia agradado o conde e tive de lhe enviar também alguns cantos, que eu havia composto recentemente.” (p. 363).

— Naquela noite, Bela sonhou que estava num baile de gala com Narciso: eles dançaram alguns minuetos, mas, assim que as músicas mais animadas começaram a tocar, Bela se sentiu cansada e convidou o rapaz para acompanhá-la até uma das salas contíguas, onde as pessoas mais velhas jogavam e onde poderiam descansar. Nessa hora, Narciso segurou com força seu braço e, aos berros, disse-lhe que não achava justo viver tantos anos como um celibatário, que sua vida virara um inferno depois que se tornara noivo, que ele passara a sentir culpa pelos desejos que ele tinha, pelas sensações que fluíam pelo seu corpo. Dizia que já havia tentado reprimi-las, contê-las, mas nada funcionava, ele continuava desejando, imaginando. ‘Já há tantos anos estamos ligados por laços de compromisso, Bela, e você ainda não confia em mim!’ Bela olhava para todos os lados, as pessoas da festa tinham parado de dançar e olhavam boquiabertas para o casal. Ela tremia, Narciso estava pálido. Ela começou a chorar e a implorar para que ele soltasse seu braço. De repente, acordou. Estava em prantos, suas lágrimas corriam por suas faces rosadas e virginais. Sentia-se friamente repelida por Narciso, mas ardia em paixão. Depois disso, procurou evitar os eventos sociais e foi se isolando, se fechando em uma imensa solidão sem fim.
De repente, eis que Bela sai de dentro de sua concha com uma resposta. Havia pensado, escrito, examinado e concluído: encontrara o sentido da correnteza de sua alma e, agora, já não podia mais desfrutar das alegrias sensuais da juventude. Devia seguir seu destino. Entregar-se a Deus.

— Reuni a família e disse-lhes “haver-me sacrificado o suficiente até então, estando disposta a ir ainda mais longe, até o final de minha vida, e compartilhar com Narciso todas as adversidades, exigindo, em troca, a plena liberdade de meus atos; declarava-lhes que meus atos e feitos não haveriam de depender senão de minha convicção.” (p. 367). Escrevi para Narciso colocando minha condição. Ele não aceitou, nós nos separamos.

— Bela libertou-se de muitas angústias, sentia-se aliviada e olhava aquela perda pelo lado positivo. Estreitou relações com a família do conde e deixou de esconder sua inclinação pelas artes e ciências. O que mais chamava a atenção das pessoas era o fato de uma jovem tão bela e bem relacionada socialmente ter preferido a companhia de Deus ao noivo. Mas era assim que Bela atingia seu fim e cumpria sua promessa de menina. 
Algum tempo depois chegou à sua casa um cunhado de seu pai. Um sujeito inteligente, rico e bem apessoado, porém, sem herdeiros. Sua mulher e seu filho haviam falecido e, agora, preocupava-se em promover a formação integral daqueles que viriam a ser detentores de sua fortuna: Bela, suas irmãs e os respectivos maridos. Durante esse tempo o tio se ocupou em programar o futuro das sobrinhas. Ao ser informado dos planos autênticos de Bela, sentiu-se inclinado em conhecê-la e, a partir de então, tornou-se para ela um importante referencial intelectual, mesmo não sendo entusiasta de seu ideal de vida. A visita do tio transformou o cotidiano da família. A irmã ainda não se sentia pronta para o casamento e, para ganhar tempo e formar-se melhor, acabou se tornando dama de honra numa corte vizinha. Bela, por sua vez, tornou-se uma canonisa. Seu tio arranjou-lhe um título da ordem pietista e ela alcançou um prestígio social bastante elevado. Fez seu voto de castidade e obediência e pôs-se a viver essa vida. Nas cortes que visitava, era sempre muito respeitada por isso. Na ocasião da viagem de sua irmã para a corte vizinha, por exemplo, Bela fora muito bem tratada pelos cortesãos e chegou a se divertir com sua imagem de diaconisa e o que ela representava para o mundo. (p. 372).

— “Deixava que me penteassem com toda a calma durante um par de horas, enfeitava-me e não pensava em outra coisa senão que, em minha situação, eu devia mesmo é vestir essa libré de gala. Nos salões repletos eu falava com todos e com cada um, sem que nenhuma figura ou caráter me deixassem uma forte impressão.” (p. 373). Mas toda essa licenciosidade não poderia durar e, ao voltar para casa, adoeci. Tive uma forte hemorragia que, mesmo não durando por muito tempo, debilitou demais meu corpo. Apesar de muito fraca, me alegrava em saber que minha trajetória era conduzida exclusivamente por Deus e, convencida de que jamais haveria de “encontrar aqui o que é justo, me sentia no estado mais alegre e mais sereno, enquanto, havendo renunciado à vida, nela era mantida.” (p. 373).

— Nos meses seguintes, seus pais também adoeceram. Cinco anos depois, sua mãe morreu. Apesar de todas essas desgraças, Bela sentia-se reconciliada e em comunhão com Deus. Os sinais da presença de seu amigo invisível em sua vida davam-lhe a certeza de sua salvação e, por isso, ela podia repousar em paz, sem preocupar-se em conformar sua alma às fórmulas de salvação expressas em sistemas de conversão e regras de comportamento. Contudo, não queria perder o vínculo com a comunidade e, sendo assim, seguia o sistema de conversão do líder pietista August Hermann Francke. Esse método de fé e prática consistia em três momentos distintos e essenciais para o desenvolvimento espiritual pietista: horror ao pecado, intensa contrição e iluminação interior. Somente esse percurso introspectivo, escrevera Francke, poderia servir de caminho para Deus. Para Bela, esse sistema era um pouco descabido. O horror ao pecado, por exemplo, ela não compreendia.

— Nunca senti o pecado corroendo minha vida, não sabia qual era o sabor prévio do inferno, nunca merecera castigos divinos. “Por nenhum momento acometeu-me o pavor do inferno; mesmo a ideia de um espírito maligno e de um local de castigo e tormento depois da morte nunca pôde encontrar lugar no círculo de minhas ideias.” (p. 375).

— E assim, sua vida seguia seu curso. As pessoas da sua família e seus amigos suspeitavam de sua lucidez, pensavam que ela estava levando tudo muito a sério, que deveria pensar um pouco no futuro, em sua saúde. Ela resolveu, então, deixar de ouvir a opinião alheia no tocante às coisas do espírito e fechou-se mais um pouco em sua concha de caracol. Nas resoluções práticas de sua vida, também deixou-se isolar.
Lá se foram, então, dez anos de sua vida. Até que novamente o acaso se manifestou. Ela conhecera Philo, um senhor interessante e que vivia de acordo quanto à sua organização doméstica e seus hábitos pessoais. Tornaram-se amigos e, com o passar do tempo, indispensáveis um ao outro. Nesse meio tempo, porém, surpresas lhe aconteceram. Philo acabou por envolvê-la em uma crise espiritual que tomou grandes proporções. Ela sentiu a força dos anos de abstinência... Descobriu, assustada, que podia pecar. A realidade do pecado a circundou e, pela primeira vez, temeu estar muito próxima do erro, do mal. De repente percebeu que a moral superava sua natureza.

— Clamei a Deus para “libertar-me daquela enfermidade e da predisposição à enfermidade, estando segura de que o grande Médico não haveria de recusar-me seu socorro.” (p. 379).

— E então, pela primeira vez em sua vida, soube o que era a fé.

(Hebreus 11:1-3: A fé é a certeza das coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem. Pela fé, os antigos obtiveram bom testemunho. Pela fé entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir de coisas que não aparecem.)

Nesse momento, Bela entendeu que somente o sangue de Jesus Cristo poderia purificá-la de todo o pecado. O cordeiro de Deus apenas surgiu em seu horizonte mental depois da realidade do pecado pesar em sua alma. Antes, ela identificava-se completamente com Deus, não havia o sentimento do erro, o gosto do mal, a predisposição para a falta. Sua alma era divina. Jesus Cristo só entrou em sua vida no momento em que foi expulsa do paraíso. Mas, foi também nesse momento que ela percebeu que, se sua natureza não estava em harmonia com a “natureza cristã”, não era falta de sua natureza, mas a prova de que aquela “natureza cristã” não era natural, era moral. Entendeu que tudo o que até agora ela havia tratado como natural, não passava de uma imposição cultural. Que havia sido um erro acreditar que “a história natural do gênero humano” era uma lição bíblica. (p. 350). Bela apenas se identificou com Jesus quando sua pretensa natureza divina tornou-se humana. Antes do gosto do pecado nunca lhe acometera a dúvida de seu lugar ao céu, agora, acreditar nele era uma questão de fé: Deus haveria de salvá-la. Agora que ela precisava de salvação, precisava também de Jesus.

— “Um impulso transportava minha alma para a cruz onde Jesus um dia morreu; um impulso, não posso chamá-lo de outro modo, em tudo semelhante àquele que conduz nossa alma para junto de um amado ausente, um aproximar-se, provavelmente muito mais essencial e verdadeiro do que supomos. Assim se aproximava minha alma Daquele que se fez homem e que morreu na cruz, e nesse instante eu soube o que era a fé.” (p. 381).

— Por essa época, Bela teve acesso aos escritos do conde Zinzendorf e travou relação com os irmãos da comunidade dos hernutos. Parecia-lhe que a regra ética desses crentes estava mais de acordo com sua experiência de vida do que o sistema de conversão de Francke. Ela estava exausta dos sermões e dos pregadores pietistas e a atenção dada ao conde aos elementos emocionais e ante-racionais da religião chamou-lhe mais a atenção, bem como os cânticos hernutos falaram-lhe mais ao coração. Em segredo, se tornou irmã da comunidade.
Por esses tempos, casou-se sua irmã. Seu tio, como anfitrião, preparou uma bela estadia para os hóspedes. Era um castelo pequeno, porém bem instalado. O bom gosto do tio encantara-a. Obras de arte magníficas: estátuas, mosaicos, pinturas..., “o espírito de uma cultura superior, ainda que somente material.” (p. 389). Admirava a forma, a delicadeza, a sensibilidades com que os gregos se expressaram em sua arte. No entanto, pensava, eram pagãos, e isso impunha a eles uma condição: a de ser uma cultura superior, porém, pecadora. Durante a estadia no castelo Bela conversou muito com o tio. Ele era crítico às suas decisões e escolhas, embora pensasse que o homem deveria tentar assenhorear-se das circunstâncias que regem seu destino e, nesse sentido, não podia censurar a sobrinha por ela ter escolhido assenhorear-se da sua natureza conjugando-a com Deus e a moral cristã. Era dono de uma habilidade comunicativa muito singela, argumentava sem ofender-lhe. Conversaram também sobre as qualidades e motivações do homem de ação, aquele que sabe de seu objetivo e caminha em direção a ele. Para seu tio, a possibilidade de escolha, de resolução e de perseverança era, no homem, admirável. Conversaram sobre arte e educação, sobre gênio e moralidade. Ao apreciar uma série selecionada pelo tio, Bela comentou que as imagens lhe sugeriam uma parábola da educação moral.

— Sim, ele disse, “daí constatamos que não está bem entregar-se à educação moral, solitário e ensimesmado; antes descobriremos que aquele cujo espírito anseia por uma formação moral tem todas as razões para educar ao mesmo tempo sua fina sensibilidade, a fim de não correr o risco de despencar do alto de sua moral, entregando-se às tentações de uma fantasia desregrada e chegando ao caso de desagradar sua natureza mais nobre mediante o prazer em brincadeiras insípidas, quando não em algo ainda pior.” (p. 393-4).

— Bela preferiu não dar a perceber que o tio se referira a ela, e assim, continuaram as conversas durante todos esses dias. Ela conheceu muitas pessoas interessantes, uma delas, um médico e naturalista que cuidava dos enfermos da corte e que, durante algumas épocas do ano, se deslocava pelas vilas rurais prestando auxílio aos párocos e demais necessitados dos povoados. Ele se aproximou de Bela, pois gostava da maneira como ela lidava com seus sentimentos religiosos. Acreditava que o seu caso poderia servir de inspiração às pessoas que, acometidas de um mal não totalmente recuperável, canalizassem suas energias para a experiência espiritual.
Passadas as festas, Bela retornou à sua casa, onde enfrentou novamente a dureza da sua vida mundana. Sua irmã mais nova morrera subitamente e, de susto, a casada abortara. Ela ficou novamente doente, acometendo-lhe uma tosse terrível e uma rouquidão tamanha que por dias não pôde falar com ninguém. Ao final desse período crítico, novamente o sol brilhou sobre Bela e seus familiares. Sua irmã deu a luz ao seu primeiro filho, Lothario. Meses depois, contudo, a saúde de seu pai piorou e ele morreu.

— Agora que estava sozinha em casa, via-se com muito tempo livre e podia recuperar o contato com os hernutos. Participava de encontros litúrgicos, refeições comunitárias, passeios e pequenas viagens de recreio. Nesse meio tempo, nasceu sua primeira sobrinha: Natalie e, no ano seguinte, a segunda, que mais tarde se tornaria uma condessa. Bela flutuava. Em algumas noites, enquanto sonhava ou enquanto não dormia, não sabia ao certo, chegava a ver seu corpo como um ser estranho, como se estivesse do alto a observá-lo sem que lhe pertencesse.

— “Eu devia guardar repouso em razão de minha saúde debilitada, e esse tipo de vida tranquilo assegurava muito bem ao meu equilíbrio; não temia a morte, chegando mesmo a desejá-la, mas sentia no íntimo que Deus me daria tempo de perscrutar minha alma e me aproximar cada vez mais Dele.” (p. 399).

— O médico, seu amigo, pedia-lhe para afastar tais sentimentos de sua alma, pois acreditava que eles poderiam agravar sua saúde. “Ser ativo – disse ele – é a primeira destinação do homem, e deve empregar todos os intervalos, durante os quais se vê obrigado a descansar, para adquirir um claro conhecimento das coisas exteriores que, mais tarde, facilitaria sua atividade.” (p. 400).

— Novamente sua irmã deu a luz e nasceu Friedrich. A criança já nasceu órfã de pai, que alguns meses antes do nascimento caíra do cavalo e falecera. Ela, ao dar a luz, foi como uma vela que se apaga na ventania repentina.

— As quatro crianças ficaram sob tutela de nosso tio, que confiou ao abade, seu amigo, sua educação. “A princípio, eu não podia entender o plano dessa educação, até que por fim mo revelou meu médico: meu tio havia-se deixado convencer pelo abade de que, ao se pretender fazer algo pela educação do homem, devia-se considerar para onde tendem suas inclinações e seus desejos. Em seguida, deve-se colocá-lo em condições de satisfazer aquelas logo que possível, de alcançar estes logo que possível, para que o homem, caso esteja equivocado, possa reconhecer bem cedo seu erro e, caso tenha encontrado o que lhe convém, agarrar-se a ele com mais zelo e com maior diligência continuar aperfeiçoando-se.” (p. 403).

— Bela notava as características de cada um dos sobrinhos e gostava de relacionar suas personalidades a dos antepassados da família para ver com quem eles se assemelhavam. Essa prática, compartilhada com o médico, era muito interessante. Vendo as fotografias antigas e relembrando as características pessoais dessas pessoas do passado, ela e o naturalista tentavam descrever-lhes o gênio. Lothario, o homem de ação, decidido, conquistador e justo. Natalie, a bela alma. A condessa, uma pessoa frágil, vaidosa e muito bela. Friedrich, nada. Nenhuma palavra.
Ela bem que gostaria de estar mais próxima dos sobrinhos, no entanto, por conta de sua debilidade física e pela maneira como o tio pensava a educação deles, mantinha-se afastada. Notava que seu tio temia que sua influência religiosa prejudicasse a formação dos jovens.

— “Mas o que não posso aprovar nesses educadores é o fato de procurarem afastar das crianças tudo o que poderia levá-las ao trato consigo mesmas e com o amigo invisível, único e fiel. Na prática, ninguém é tolerante! Pois mesmo aquele que afirma deixar a cada um seu próprio modo de ser, está sempre buscando excluir a intervenção daqueles que não pensam como ele.” (p. 403).

...

Assim acreditou e viveu Bela até os últimos dias de sua vida.

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Texto escrito em julho de 2010.
Pulicado na revista Rapsódia em setembro de 2013.

1 - Ver GOETHE, Johann Wolfgang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Trad. Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 347 (nota de rodapé 1).
É importante também apontar o caráter singular desse tipo de confissão produzida por Klettenberg. Segundo Wilma Maas em O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura, “[...] um dos mais importantes mecanismos de introspecção e de investigação psicológica que o mundo moderno conheceu é a literatura de conversão religiosa. Comuns na Alemanha luterana e pietista desde as primeiras décadas do século XVIII, os testemunhos de conversão e os apontamentos autobiográficos dos indivíduos “renovados” e “renascidos” descreviam a trajetória individual do crente desde sua vida pregressa até o momento da conversão mística ao pietismo. [...] A experiência pessoal relatada nessas autobiografias místicas tinha caráter exemplar e era difundida ao público, seja por meio de cartas, seja da publicação em livro. Embora não fosse propriamente literatura, o estilo pessoal e a preocupação do indivíduo com seu desenvolvimento espiritual configuraram o conceito religioso de formação que, secularizado, contribuiria para a fixação da forma do romance burguês na Alemanha. [...] A Bildung pietista prevê portanto um hermético isolamento em relação ao mundo, como forma de se trilhar o caminho que leva à graça divina.” (MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Edunesp, 2000, p. 73-4).
2 - Referência à personagem nomeada “Bela Alma” no romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.
3 - Referência ao personagem goetheano chamado “Narcisse”.
4- “[...] O quarto é um aposento onde se encontra uma vasta cama de cortinados, localizado além da sala e separado desta por uma porta provida de fechadura e ferrolho.” Esse local fechado e separado da sala, cômodo onde acontecem todas as atividades pessoais e sociais dos membros das famílias, era acessado apenas por indivíduos selecionados. Era ali que se guardavam, nas casas burguesas, as tapeçarias, roupas e jóias, os livros, registros de contas e diários. “[...] Esta fronteira entre as coisas que dão prazer e são secretas e as atividades que se realizam na sala é típica da classe dos grandes mercadores no final de Idade Média.” RANUM, Orest. “Os refúgios da intimidade”. In: CHARTIER, Roger. História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. Trad. Denise Bottman e Bernardo Joffily. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 219-20.
5 - “Nas classes abastadas, o código de boas maneiras proibirá por muito tempo que uma moça se admire nua, mesmo que seja através dos reflexos de sua banheira. Há pós especiais com a missão de turvar a água do banho, de forma a prevenir tal vergonha. O estímulo erótico da imagem do corpo, exacerbado por semelhante proibição, frequenta esta sociedade que enche os bordéis de espelhos antes de pendurá-los, tardiamente, na porta do armário nupcial.” CORBIN, Alain. “O segredo do indivíduo”. PERROT, Michelle. In: História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. 4. Trad. Denise Bottman e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 423.
6 - ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol 1. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 103.
Les Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne (As regras da decência e da civilidade cristã), de La Salle, era um manual de comportamento baseado nos costumes da corte francesa destinados à disseminação de “[...] maneiras e modelos cortesãos por estratos mais amplos da burguesia [...]”. Esse tipo de literatura se espalhou por várias regiões da França no século XVIII, chegando até aos círculos burgueses alemães da época.
7 -  A versão de Les Règles que faço referência aqui é a do ano de 1729, pois era a que estava em vigência na época em que Susanna Katharina tinha aproximadamente 15 anos. A versão seguinte saiu no ano de 1774, o mesmo de seu falecimento. (Idem, p. 138).
8 - “A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. E não permito que a mulher ensine, nem que exerça autoridade sobre o marido; esteja, porém, em silêncio”. (I Timóteo, 2:11-12).

quinta-feira, 3 de maio de 2012

sobre o ator

"O ator de gênio não é o personagem, ele o representa e o representa tão bem que tu o tomas como tal: a ilusão só existe para ti; quanto a ele, sabe muito bem que ele não o é".
(da obra Paradoxo sobre o comediante de Diderot)

segunda-feira, 30 de abril de 2012

novo ciclo

...acabou-se a poesia...
...é hora de prosa...

A história das ideias na "Árvore mágica" de Peter Sloterdijk

O texto que se segue foi publicado nos Anais do IV Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina, realizado em 2010. No entanto, há um mistério que o ronda: não é possível encontrá-lo em qualquer site na internet, não existe link para os textos dos Anais, nenhuma pista... Por isso resolvi publicizá-lo publicando-o aqui.

De lá para cá revi algumas afirmações que fiz, porém, por hora, não farei qualquer alteração ou correção do texto. Aguardo comentários ou críticas que apontem tais imprecisões... De outra maneira não considero necessário fazer qualquer reforma.

EXERCÍCIO NARRATIVO: AS PRIMEIRAS CENAS DE VIAGEM
A árvore mágica não é um romance histórico, é uma história da filosofia, uma ficção histórica ambientada no ano de 1785. A maior parte da narrativa passa-se na França, embora o protagonista, Jan van Leyden, tenha iniciado seu percurso na Áustria, sua terra natal. 

Recém formado em medicina pela Faculdade de Viena, enfrentando a aspereza do início de uma carreira profissional, encarando as dificuldades de um burguês típico daquela época, naquelas paragens germânicas, Jan seguia sua vida sem grandes emoções. Tal como Werther1, transitava pela cultura erudita germânica, era um nobre em seus costumes, porém, socialmente, não passava de um burguês. Desde que lera O sofrimento do jovem Werther vinha se sentindo meio sufocado, com a sensação de que seu mundo não cabia mais em si, em Viena, na Academia. Periodicamente relia trechos das cartas do jovem burguês de Goethe como uma espécie de amuleto sagrado, não queria jamais se acostumar àquela vida, não podia esquecer seus planos, não devia ficar. Nas noites em que se encontrava com Silberstein, seu velho amigo, costumava declamar os trechos memorizados:

Queria retirar-me e, contudo, fiquei, com a curiosidade de examinar tudo aquilo com mais miudeza. Entretanto o resto da companhia chegou. [...] Falei com algumas destas personagens que eu conhecia, que me responderam em termos mui lacônicos. [...] Não percebi que as mulheres falavam ao ouvido umas com outras no fim da sala; que isto circulava entre os homnes, que Madame de S. falava com o Conde com ânsia (Mademoiselle de B. me disse tudo isto depois); até que finalmente o Conde veio ao pé de mim e conduziu-me para uma janela: Vós conheceis, me disse ele, nossos ridículos usos; tenho reparado que a companhia estranha ver-vos aqui [...]. (Goethe, O sofrimento do jovem Werther, p. 101-102).

Precisava sair, respirar novos ares, conhecer outros modos de vida, ver outras gentes. Não podia imaginar sua vida como a de Werther, inferiorizada devido a posições sociais, precisava criar alternativas, não queria experimentar o mesmo fim do personagem. Conforme o tempo passava, sentia o peso daquela vida maçante em suas costas. Imaginava que na França as diferenças de classe já não eram tão rígidas. Ainda que os costumes da nobreza prevalecessem sobre a burguesia, a discriminação classista estava mais suavizada. Durante anos, Jan sonhava com Paris. Tarde da noite, quando não conseguia dormir, imaginava-se em salões de festas e soirées francesas.
Até que um episódio incomum transformou seu destino.
Estamos em maio de 1785. O magnetizador italiano Balsamo Scaferlatti, o conde de Cagliostro2, se encontra em Viena para mais uma de suas sessões magnéticas. A séance reúne a nobre sociedade vienense e alguns ilustres burgueses em casa do falecido barão Von Rosenkotz. Van Leyden e Silberstein estão entre os convivas. Cético, Jan se posiciona à margem do grupo e, como mero espectador, procura observar o comportamento das damas da sociedade e analisar o semblante dos senhores presentes enquanto aguarda a entrada triunfal de Scaferlatti. E eis que o mago surge no meio do salão. Jan sente a energia que chega junto com ele, o calor toma conta do ambiente, os homens começam a transpirar, as mulheres tornam-se ofegantes e trêmulas, algumas deixam escapar gritos dissonantes, outras estão prestes a desmaiar, madame de Morawitzky fica extremamente pálida. Até que Scaferlatti levanta o dedo indicador direito acima de sua cabeça e, com esse gesto, capta todos os olhares presentes. (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 27-9). Faz-se silêncio, todos estão magnetizados. Scaferlatti toma a palavra:

Quando sonhamos que sonhamos é porque estamos próximos do despertar. Sonhadores intranquilos é o que são — já não dormem profundamente, mas tampouco ainda despertaram. O mundo dos espíritos ainda está fechado para vocês, ainda precisam de um intérprete para poder falar com os espíritos que nos rodeiam em todos os instantes de nossas vidas. Eles estão tão perto de nós que nem chegamos a distingui-los, porque jamais vemos aquilo que nos está mais próximo. Por isto, cegos e surdos como estão, precisam de ajuda para fazer com que os invisíveis falem... Os espíritos nos rodeiam por todos os lados, vivem dentro de nós, ao nosso lado e atrás de nós. Muitas gerações de acompanhantes sutis nos segredam aos ouvidos, destruidores alguns, mas também outros amáveis, alguns espíritos dos mortos e outros daqueles ainda não nascidos...
[...] Nada pode ser mais urgente agora que aprender a conversar com os espíritos. Talvez me seja dado ensinar-lhes a que se comuniquem com as forças da face oculta da lua e a que decifrem as mensagens secretas dos espíritos... (Idem, p. 29-30).

Terminada a sessão, Jan sente-se diferente. Aquela intensidade energética tocara sua alma, sente que é chegada a hora de uma mudança mais drástica. Sim, pensa ele, quero conhecer o lado oculto da lua, quero encontrar esse misterioso medicamento espiritual, a cura para os males da alma. (Idem, p. 30). No mês seguinte, Jan já está na estrada. Conseguira uma bolsa de estudos para a viagem e boas recomendações dos maçons de Viena aos confrades franceses. Passa por Munique, não se sabe por que, e segue para Estrasburgo, onde a Sociedade da Harmonia Universal mantém uma filial3. Naquela cidade, procura por LeBrasseur, um antigo professor de medicina, “[...] excêntrico exemplar de médico paracélsico, para o qual a medicina não podia ser separada de considerações sobre as analogias entre o macrocosmos e o microcosmos.” (Idem, p. 33). Um pesquisador sagaz, entusiasmado com sua grande descoberta científica, a igualdade óssea dos homens, acredita que a Ciência informará o povo a respeito de seus direitos, mostrará ao pobre seus verdadeiros aliados.

[...] Hoje em dia vemos sobretudo duas coisas que geram injustiça e apatia: o berço e a posse. Lutar contra a primeira atualmente já não é impossível. A pantomima dos grandes senhores há tempo perdeu seu significado [...]. Empreender algo contra a grande fortuna já será um pouco mais difícil, caro colega, mas para nós esta é uma “cura posterior”! (Idem, p. 41)

LeBrasseur apresenta a Jan seu laboratório, onde existem dezenas de frascos contendo partes do corpo humano: corações, pulmões, intestinos. Porém, o professor chama a atenção do jovem médico para um órgão, “um órgão especial”, diz ele: o útero. Aparentemente um órgão sem importância, ressalta o antigo médico, o útero é “volúvel e caprichoso”, age “[...] como se tivesse consciência de ser mais importante do que os outros”, é uma “copuladora mística”, lugar que “une o espírito à matéria”, um mistério para a medicina setecentista. (Idem, p. 34-5).
É nesse cenário, quando a viagem de Jan mal havia começado, que ele sente os primeiros indícios da transformação que se opera em seu interior. Vê seus pensamentos embaralhados, confusos, como se não lembrasse mais nada do que aprendera em Viena, como se todo o universo científico ruísse em torno dele, como se todas aquelas explicações a respeito da vida perdessem o sentido.

[...] Ele sentia como se alguém tivesse plantado em sua cabeça um cérebro estranho com um sistema de imagens e combinações de pensamentos deslumbrantes. Sentia como em seu interior se abria um espaço para este cérebro estranho [...]. (Idem, p. 40).

Com todas essas sensações inexplicáveis, Jan começa a esquecer-se de si mesmo e percebe que há em seu íntimo algo inteiramente novo, algo que não se conecta com o passado, que se faz presente sem que se possa nomear de onde vem, uma ruptura. Não sente mais o chão sob os pés, deseja desesperadamente encontrar um local inacessível ao pensamento, esse pensamento persecutório e incessante que decidira montar guarda em sua mente. — Quem sou eu? O que me explica? Quais são as marcas da cultura que levo marcadas em minha pele? Um animal selvagem domesticado, uma fera que vive em rebanho. Sou um despropósito para a natureza. Maldita cultura, maldita moral. — Sua cabeça gira, suas mãos tremem, sente arder-se em febre. Vê flashes dos momentos vertiginosos que passou com LeBrasseur no topo daquela torre. Conforme os pensamentos cruzam sua mente como relâmpagos, Jan escuta as badaladas estourando em seus ouvidos. E lembra-se das palavras do professor:

Você precisa tomar cuidado. “[...] Irão lhe explicar que essas torres são símbolos do temor a Deus de nossos ancestrais, que são monumentos que simbolizam a mais profunda submissão dos homens ante o Absoluto e, símbolos duradouros da entrega da vontade humana nas mãos da Divina Providência.”
[...]
Irão lhe dizer muitas coisas e você “[...] terá que se decidir se irá querer acreditar em nossas doutrinas inspiradas na teologia das torres ou se irá preferir confiar em seus olhos, que veem uma coisa completamente diferente daquilo que dizem seus ouvidos. (Idem, p. 48).

As badaladas ficam cada vez mais altas, sua cabeça pulsa, a incessante voz do professor: “[...] Enquanto se fala da impotência, verá nessas torres a mais terrível ânsia pelo poder [...]”; “[...] Enquanto com belas palavras se fazem os mais humildes votos de obediência e de entrega, verá a vontade rebelar-se da maneira mais ardorosa.” (Idem, p. 48-9). — O que ele quis dizer com ‘colocamos a faca na garganta do velho Deus para depois ocuparmos seu lugar?’ Há muito esse Deus de meus ancestrais morreu, mas nunca me senti tão responsável pela sua morte quanto agora. Eu sou o animal mais maldito sobre a face da Terra, sou responsável por esse caos que aí está. E o caos parece que está somente em mim. — Jan passa o cair da tarde e toda noite perseguido por esses pensamentos.

No dia seguinte sente-se mais calmo e consegue pensar melhor sobre a ‘Psicologia das alturas’. Segundo LeBrasseur, no futuro será essa psicologia que dará eficácia à medicina, pois será necessário aos médicos curar os homens modernos da doença que eles se tornarão. O homem, tendo se colocado tão superior à natureza, sentirá vertigens ao olhar para baixo. (Idem, p. 49-50). Caberá ao ‘psicólogo das alturas’ trazer esses homens de volta para o chão, pois

[...] Quem constrói obras que alcançam tamanha altura só poderá ter problemas no chão. Quem sobe tão alto, sentirá que a maldosa Mãe-Terra se abrirá sob seus pés como abismo assustador. Sintomas de altura, nada mais são que sintomas de altura e apenas com isto teremos que lidar. A nova arte precisa resgatar o cidadão refugiado nas alturas e deformado pela cultura de seu torpor de vitória, para depois colocá-lo numa natureza enriquecida e novamente amiga. Para poder fazer frente ao mal das alturas é preciso que cavemos poços em sua existência física. (Idem, p. 49).

Sim, como uma toupeira, escavar os edifícios do Eu, procurar libertar a alma humana da prisão moral, do estranho e absurdo amestramento a que foi submetida, abrir suas comportas para o que lhe resta de natural, selvagem e indomável. Des-civilizar o Eu,

[...] Uma máquina complicada e melancólica, tesa, violenta e frágil, um autômato hipocondríaco que entra em pânico quando algo se agita amedrontadoramente em seu corpo e quando, apesar de tudo, a vida continua a pulsar e a vibrar... (Idem, p. 50).

Na hora do almoço, LeBrasseur fala sobre a comunidade médica de Estrasburgo e a ironiza, afirmando se tratar mais de uma ‘ordem monástica’ ou uma ‘seita secreta’ do que uma ‘organização profissional’. Conta-lhe acerca dos eventos realizados no passado pelos mesmerianos da Alsácia que, mais tarde, uniram-se aos confrades de Estrasburgo formando a Sociedade da Harmonia Universal. — “[...] haviam reunido a melhor parte da nobreza alsaciana, juntamente com a burguesia progressiva, visando superar as forças desarmônicas que inibiam tanto a vida moral do país, quanto prejudicavam o bem-estar físico do indivíduo.” (Idem, p. 53). O ser humano, embora pareça, não está isolado do resto da Existência. Ele é penetrado por um fluido universal, um fluido que penetra a todos os seres animados e inaminados, um fluido energético. Saúde e liberdade são, portanto, dois lados de mesma moeda. Obviamente, meu caro, tenha cuidado com a liberdade, em nome dela muitas pessoas morrerão. As árvores da liberdade e da guilhotina crescem juntas...
Enfim, voltemos ao assunto. Que tal se voltássemos àquela conversa iniciada ontem, sobre natureza e cultura? — Jan fica tenso, mas antes que consiga responder à pergunta, o professor dá continuidade à conversa. — Lembra que falamos a respeito do homem colocar-se acima da natureza e tornar-se um ser artificial? Esse é o homem civilizado, o homem doente. O distanciamento da natureza, a aquisição de regras morais, a submissão a costumes tão artificiais formaram no hipocôndrio humano uma represa à livre passagem do fluido. Essa contenção, esse aprisionamento de energias é a própria doença. A arte do magnetizador, meu jovem, consiste em abrir as comportas da represa da alma, desmagnetizar o hipocôndrio, deixá-lo fluir. (Idem, p. 53).

[...] Nunca observou quão poucas pessoas em nossa sociedade ainda são capazes de rir, ou de gritar, ou de soluçar a pleno pulmão? Responsáveis por esta incapacidade seriam as instituições que provocam a estagnação do fluido. Em outras palavras, seria a moderna educação artificial, que reprime tudo aquilo que procura emergir buscando a luz [...]. (Idem, p. 53).

Para concluir a conversa, LeBrasseur comunica Jan que precisará viajar a um castelo vizinho pois um confrade adoecera repentinamente e precisava de seus serviços. Aconselha-o a seguir a estrada até Paris. Pede-lhe para ficar atento aos rumores acadêmicos a fim de perceber se os dias de Mesmer na capital estão mesmo contados. Admite que desde seu sumiço repentino a Sociedade de Paris anda fora de controle e a repercussão disso torna-a cada dia mais desagradável aos confrades de outras regiões. Diz-lhe também para seguir viagem e ir a Soissons, a nordeste da capital, onde deverá procurar por Armand-Marie-Jacques de Chastenet, o marquês de Puységur. O aristocrata, diz ele, pratica atualmente uma forma totalmente nova de terapia: o sono artificial, e mantém muito boas relações com a Sociedade de Estrasburgo. (Idem, p. 54).

[...] Não são poucas as mentes lúcidas que veem nele o único herdeiro legítimo da missão magnética. Ainda que os senhores Bergasse, Carra, Deslon e Brissot disputem nos folhetins parisienses tentando obter as melhores peças da herança de Mesmer... (Idem, p. 54).

Despedem-se. Le Brasseur retira-se para o campo e Van Leyden para a biblioteca. Já que terá de esperar uma diligência que partirá para Verdun dentro de alguns dias, pensa em aproveitar o tempo preparando-se intelectualmente para os próximos encontros. Sente-se ainda muito estranho, frágil até: deixara de ser senhor de seus pensamentos e agora permanecia à deriva deles, era um indigente.

EXERCÍCIO EXPLICATIVO DAS PRIMEIRAS CENAS DE VIAGEM
Como contar a história de um romance desconhecido do público? Sim, porque falar de Capitu e Bentinho para intelectuais brasileiros contemporâneos requer um nível mais superficial de detalhamento da história, visto que, em tese, todos eles conhecem esses personagens machadianos que figuram no romance Dom Casmurro. Filmes, músicas, documentários, diversos comentários e análises já foram feitos a respeito desse livro que, sem dúvida, marcou época. Sem contar que durante anos tal livro foi leitura requerida aos alunos do Ensino Médio que desejassem cursar uma graduação. De fato, Capitu povoa as ideias de literatos e cientistas humanos brasileiros, tal como a Tieta de Jorge Amado, Policarpo Quaresma de Lima Barreto e outros tantos personagens da literatura geral, como Sherlock Holmes, Mrs. Dalloway, Madame Bovary e Fausto. Porém, o livro em questão, A árvore mágica, não é um sucesso de público. Não muitas pessoas ouviram falar dele e poucas o leram. O livro, escrito em 1985, foi publicado em 1988 no Brasil por uma editora pouco conhecida (Casa Maria Editorial; Livros Técnicos e Científicos) do Rio de Janeiro que, se atualmente está na ativa, não se modernizou ao ponto de manter um site na internet. Sem distribuição e divulgação, recheado de ideias filosóficas, o livro não é realmente um exemplo de sedução para o grande público. Também não circula muito entre os acadêmicos. Nos mecanismos de busca na internet, por exemplo, encontrei poucos blogs que apresentam comentários e resenhas do livro e de dois a três livros que dedicam um capítulo ou parte de um capítulo à análise d'A árvore mágica.
Então, como contar essa história sem perder a poesia que nela vive? O texto apresentado sob o título de Primeiras Cenas de Viagem não passa, portanto, de um ensaio, uma tentativa de leitura do romance do filósofo alemão. Uma experimentação que intenciona evitar as profundas deformações narrativas que geralmente os textos acadêmicos provocam nos textos literários. No ensaio desfilam os assuntos histórico-filósofos tratados pelo autor desde o “Prólogo” até o capítulo 4: “Da república místico-elétrica e sobre os quadris azuis das taitianas”, bem como referências intertextuais que visam o enriquecimento da ambientação histórica do personagem. Refere-se, portanto, apenas à primeira etapa de viagem do protagonista, abarca apenas o período em este esteve em contato direto com seu primeiro mestre: LeBrasseur.
Por narrar uma história das ideias, A árvore mágica é uma interpretação do ‘espírito’ filosófico de fins do século XVIII, mais especificamente, de uma mentalidade erudita que envolvia o intercâmbio de ideias filosóficas germânicas e francesas: uma filosofia da psicologia. O subtítulo da obra: “O surgimento da psicanálise no ano de 1785. Tentativa épica com relação à filosofia da psicologia” dá indícios a respeito da opinião do autor sobre a história da psicanálise. Para ele, ela não surgiu a partir da teoria de Freud, tem uma história anterior, percorreu diversos caminhos até chegar nesse formato canônico proposto e assinado pelo vienense do século XIX. Sloterdijk dá, portanto, um passo de volta na história da psicanálise e traz à tona o diálogo filosófico a respeito da cura dos males da alma travado desde cerca de 100 anos antes da viagem de Sigmund à França, em 1885. Dessa maneira, o autor apresenta sua leitura sobre a mentalidade intelectual a que Freud estava inserido, traz para o texto as referências literárias e ideias filosóficas predominantes nos círculos eruditos europeus nos séculos XVIII e XIX, tal como o empirismo, materialismo, espiritualismo, racionalismo, magnetismo animal e tantos outros sistemas explicativos da vida que por certo transitaram pela mente científica de Freud.
E como Sloterdijk faz isso? Ele corporifica os ‘encontros’ literários e historiográficos de Freud em Jan Van Leyden, o protagonista do romance. O personagem é testemunha ocular de episódios que posteriormente serão vividos, conhecidos, lidos, aceitos ou negados por Freud. Van Leyden se encontra com uma série de personagens cujas ideias se tornarão historicamente ilustres: Condorcet, Galiani, Guilhotin, Marat, Puységur; outros personagens incógnitos, ficcionais, figuram ideias de Spinoza, Hölderlin, Rousseau, Nietzsche... Na realidade, todos esses personagens são alegorias para a história das ideias de Sloterdijk. O autor não se atém aos fatos historicamente comprovados nem à periodização cronológica da história, até porque, sendo o pensamento volátil, ele não opera progressivamente no tempo. O filósofo alemão cria um cenário ficcional para encenar sua história da filosofia da psicologia. No “Prólogo”, afirma o seguinte:

A história que se segue passa-se há quase duzentos anos, às vésperas de uma série de acontecimentos que passaram para a História sob o nome de Revolução Francesa.
Não se trata de um romance histórico. Trata-se do presente, do puro presente e de nada mais do que do presente. O livro empreende uma expedição a um passado não passado que ainda está marcado a ferro e fogo nas circunstâncias atuais. A história que iremos relatar passa-se no agora, no presente ampliado a que chamamos de modernidade. (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 15).

Van Leyden é, assim, uma duplicação de Freud. Ele figura, na trama narrativa, como seu alterego extemporâneo, como uma espécie de conexão atemporal entre Freud, o médico vienense do XIX e Mesmer, o austríaco do XVIII. Além disso, o personagem de Sloterdijk vivencia uma porção de acontecimentos homólogos aos que Freud viveu. O episódio da sessão magnética de Balsamo Scaferlatti, descrito no romance, é um exemplo dessa correspondência biográfica entre o personagem e Freud. Em Um estudo autobiográfico, Freud relata que quando era um estudante de medicina em Viena assistira a uma exibição pública apresentada pelo mesmeriano dinamarquês Carl Hansen. Na ocasião, afirma, convenceu-se da eficácia da hipnose para a cura das doenças nervosas. Diz ele:

[...] Notara que um dos pacientes em quem se fizera a experiência se tornara mortalmente pálido no início da rigidez cataléptica, e assim havia permanecido enquanto aquela condição havia durado. Isso me convenceu firmemente da autenticidade dos fenômenos da hipnose. (Freud, Um estudo autobiográfico, 1924).

Tal como Freud, Van Leyden é proveniente de uma família judia, cursa medicina na Faculdade de Viena e parte para a França alguns anos depois de recebido o grau de médico. Na França, assim como o ‘patriarca da psicanálise’, conhece os trabalhos terapêuticos realizados com pacientes do Hôpital Génèral de la Salpêtrière e se envolve especialmente com o sonambulismo artificial, posteriormente chamado de hipnotismo, principal método terapêutico utilizado por Freud no início de sua carreira. Porém, por ser um alterego ficcional e extemporâneo, a existência de Van Leyden não respeita tempos históricos. Ele passa por todo o calor revolucionário do século XIX, volta para a Áustria, vai à guerra franco-prussiana, retorna à França e, por fim, se transforma na própria figura de Sigmund Freud.
Mas, voltemos às Primeiras Cenas de Viagens...
O recorte feito nesse texto abarca, como já dito, o Prólogo e os 4 primeiros capítulos do livro. Nesse trecho, Van Leyden se encontra com LeBrasseur, seu primeiro mestre, que na ficha de apresentação dos personagens, publicada imediatamente após o Índice, figura como um “velho professor de medicina de Estrasburgo, mesmeriano com tendências à medicina política, filantropo e maçon.” (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 11). Sem levar em conta as referências biográficas, Le Brasseur personifica uma porção de ideias nietzscheanas4. O autor do romance trabalha justamente com esse recurso: a personificação de ideias. Friedrich Nietzsche não poderia ser o professor, primeiro porque naquela época ele ainda não existia, segundo, porque jamais se tornou professor de medicina em Estrasburgo. Enfim, aproveitando o fato de Nietzsche ser um ‘filósofo extemporâneo’, Sloterdijk empresta algumas de suas teorias para dar voz a LeBrasseur que, inclusive, assume muitas vezes a voz de alguém que intui acontecimentos vindouros.
LeBrasseur confunde o espírito de seu Van Leyden, abala os pilares de sua moral cristã, ataca as bases de seu Eu civilizado, ‘tira-lhe o chão’ (Idem, p. 51). Provoca-o a pensar de maneira diferente e anuncia a ‘Psicologia das alturas’, uma nova arte curativa de cidadãos modernos. (Idem, p. 49).

Diz LeBrasseur:

[...] Enquanto se fala da impotência, verá nessas torres a mais terrível ânsia pelo poder: enquanto se fala de temor a Deus, verá desafogar-se a mais atrevida arrogância sob os céus. Enquanto com belas palavras se fazem os mais humildes votos de obediência e de entrega, verá a vontade rebelar-se da maneira mais ardorosa. [...] Desde que as torres estão de pé, a humanidade se encontra em estado de sublevação. A farsa da humildade não pode ocultar o fato de que colocamos a faca na garganta do velho Deus para, depois que ele se esvaia em sangue, possamos ocupar o Seu lugar. (Idem, p. 49).

O insensato, o homem louco que com sua lanterna procura nos templos e mercados onde está Deus, e grita, pergunta, blasfema: onde está Deus? Os demais riem dele, dão-lhe respostas idiotas e ele vocifera:

[...] “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? (Nietzsche, Gaia Ciência, p. 147-8, [125]).

LeBrasseur, sobre a vida corporal para o ser humano, um ‘animal doente pelo autocontrole’:

Para este animal doente pelo autocontrole, a vida corporal deve ser um tormento. Ele se horroriza com tudo aquilo que brota da velha natureza de seu corpo e o faz lembrar de sua origem animal, como a grandes convulsões e o furor do sexo, a decadência física, ou as carícias maternais ancestrais. Tudo isto traz recordações da impotência digna de comiseração e da natureza selvagem de sua própria essência. Mas o que é o Eu civilizado, senão uma máquina contra a impotência? Uma máquina complicada e melancólica, tesa, violenta e frágil, um autômato hipocondríaco que entra em pânico quando algo se agita amedrontadoramente em seu corpo e quando, apesar de tudo, a vida continua a pulsar e a vibrar... (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 50).

Um tema recorrente em Nietzsche é a crítica à domesticação que o ser humano tem que passar para poder existir em rebanho, para suportar a vida em sociedade. Ele se estremece contra a moral religiosa europeia, fundamentalmente contra a moral cristã, que preconiza o abandono do corpo em detrimento da alma, que ensina a contenção física e condena o fluir corporal.

[...] Não que eu pense que nisso a maldade e baixeza humana, o bicho mau e selvagem que há em nós, digamos, deveria ser dissimulado; é minha ideia, pelo contrário, que justamente como bichos domesticados somos um espetáculo vergonhoso e necessitamos de travestimento moral [...]. O europeu se disfarça na moral, porque se tornou um animal doente, doentio, estropiado, que tem boas razões para ser “domesticado”, porque é quase um aborto, algo incompleto, fraco, desajeitado... Não é a ferocidade do animal de rapina que precisa de um disfarce moral, mas o animal de rebanho com sua profunda mediania, temor e tédio consigo mesmo. A moral adorna o europeu — confessêmo-lo! — fazendo-o parecer mais nobre, mais importante, respeitável, “divino” —. (Nietzsche, Gaia Ciência, p. 246, [352]).

E para encerrar, mas um trecho de LeBrasseur e Nietzsche:

[...] Nunca observou quão poucas pessoas em nossa sociedade ainda são capazes de rir, ou de gritar, ou de soluçar a pleno pulmão? Responsáveis por esta incapacidade seriam as instituições que provocam a estagnação do fluido. Em outras palavras, seria a moderna educação artificial, que reprime tudo aquilo que procura emergir buscando a luz [...]. (Sloterdijk. A árvore mágica, p. 53).

No aforismo 14 da “Terceira dissertação” da Genealogia da Moral (“O que significam os ideias ascéticos”), Nietzsche fala sobre a condição doentia do homem civilizado. Em sua perspectiva, a condição doentia é o normal no homem que se submete às regras da moral ascética. Nesse texto, o filósofo denuncia a proliferação de instituições ascéticas, como as igrejas e universidades, que estariam incentivando e afirmando a enfermidade humana. Em um trecho, diz o seguinte:

[...] Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os olhos e ouvidos, sente, em quase toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a um ar de hospital — falo, naturalmente, das áreas de cultura do homem, de toda espécie de “Europa” sobre a terra. (Nietzsche, Genealogia da moral, p. 111, [14]).

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1 - Referência ao personagem de Goethe em O sofrimento do jovem Werther, livro publicado em 1774.
2 - Cf. ZWEIG. A cura pelo espírito, p. 59.
3 - Sociedade fundada em Paris por Nicolas Bergasse ‘um filósofo-advogado-hipocondríaco’ proveniente de uma rica família comerciante de Lyon, e Guillaume Kornmann, ‘rico banqueiro de Estrasburgo’, ambos ‘discípulos’ de Mesmer e membros da Loja Maçônica. Cf. DARNTON. O lado oculto da revolução, p. 54.
4 - Lembrando que, além das ideias de Nietzsche, LeBrasseur agrega também pensamentos referentes a outros pensadores, como Spinoza, Rousseau, Bergasse, Charcot e o próprio Mesmer.

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BIBLIOGRAFIA
DARNTON, Robert. O lado oculto da revolução: Mesmer e o final do Iluminismo na França. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

FREUD, Sigmund. Um estudo autobiográfico [1924]. Dir. Jayme Salomão. In: Obras Completas, vol. 20, Edição Eletrônica Obras Psicológicas de Sigmund Freud: Imago.

GOETHE, Johann Wolfgang von. O sofrimento do jovem Werther. Trad. Anônima; apresentação de Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. Gaia Ciência. [125;352]. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 147-8;246.

__________.“Terceira dissertação: O que significam os ideias ascéticos”. In: Genealogia da moral: uma polêmica. [14]. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 87-149.

SLOTERDIJK. Peter. A árvore mágica: o surgimento da psicanálise no ano de 1785. Tentativa épica com relação à filosofia da psicologia. Trad. Andrea J. H.; Fairman. Rio de Janeiro: LTC – Livros técnicos e científicos Editora; Casa-Maria Editorial, 1988.

ZWEIG, Stefan. A cura pelo espírito: Mesmer, Mary Baker-Eddy, Freud. Rio de Janeiro: Guanabara, s/d.


FILMOGRAFIA
HUSTON, John (dir.). Freud além da alma, 1962.


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quem ouve? quem houve?

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