sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

antropo-sendo

 estamos sucumbindo ao nosso umbigo.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Atenção

 Em tempos de patrulha virtual

Viver é correr o risco do crime.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

em tempos de pandemia e redes virtuais

 .não nos ouvimos

ou vemos

apenas emitimos sinais.





sexta-feira, 9 de abril de 2021

É osso

Escrever é osso. Saboroso e cheio de carne para arrancar com os dentes. A gente se demora. Lê, lê e lê, imagina, confabula, esquece, descrê, lê, lê, imagina, argumenta, contra-argumenta, lê mais um pouco, lê. O cachorro escolhe um canto para passar suas próximas horas, deita-se com seu osso, lambe, morde, morde, morde, lambe, lambe, morde, dorme, acorda e morde, deita em cima, rola, enterra o osso, desenterra o osso, morde mais um pouquinho. O osso se acaba, o livro fica pronto. E logo está lá o cachorro procurando outro osso para roer... e o escritor logo tramando outro livro para escrever. 

quinta-feira, 2 de abril de 2020

nova era

2020 é o novo AC/DC.

Antes do Covid/Depois do Covid.

guerra cibernética

Pronto, acabou o Jornal Nacional.

Todos a postos no front de batalha com seu celular em punho.

E dá-lhe guerra cibernética!!

na antessala

Como serão seus últimos dias sobre a Terra?

mecanismo de incutir verdades

Até ontem uma tímida rede de solidariedade vinha sendo tecida. Muito frágil, mas vinha sendo.
Até ontem.
As pessoas vinham convencidas da necessidade de isolamento. E isso as igualava e lhes dava uma noção da necessidade de um ajudar o outro.
Até ontem.
Hoje os mais fiéis insistiram em compartilhar memes dizendo coisas como: o Brasil não pode parar, nossa economia vai quebrar, ficam os mais velhos e trabalham os mais novos, não vamos parar o Brasil por causa de uma gripezinha.
Mais um racha nessa nossa frágil humanidade brasileira.
Mais uma vez os biltres passam a madrugada elaborando memes e textos para grupos de whatsapp.
Precisamos neutralizar essa produção de fake news e manipulacão de mentes, criação de falsos inimigos, mentiras, infornações falsas. Tudo para que os fiés assim continuem... E cada vez mais convencidos por essas leituras enviesadas do mundo.

escrito em 26/03/2020

as três peneiras

tem uma história de um filósofo antigo que encontrou um amigo, e esse disse que precisava lhe contar alguma coisa.

Esse filósofo, então, perguntou: isso que você vai me contar passa pelas três peneiras da sabedoria?

O sujeito perguntou o que seriam as três peneiras. E o pastor (para contextualizar e o pessoal entender melhor) lhe respondeu: a primeira peneira é a da verdade. o que você vai me contar é verdadeiro? Olha, eu não estou perguntando se você ACHA OU GOSTARIA que fosse verdadeiro. Eu estou perguntando se o que você vai postar (para contextualizar de novo) É verdadeiro. Se você sabe disso, se você tem como provar isto. Pois bem, se não é verdadeiro ou você não sabe se é verdadeiro ou falso, NÃO COMPARTILHE (contexto).

A segunda peneira é a da bondade. O que você vai me contar é uma coisa boa? Ela vai ajudar a construir ou desconstruir um caminho? Presta atenção, não estou perguntando se isto é bom para você porque você gostaria que assim fosse. Eu estou falando de produzir um bom fruto.

A terceira peneira é a da necessidade. O que você vai compartilhar, comentar, dar sua opinião é necessário que seja feito? Para além da sua necessidade de emitir uma opinião, é necessário esse comentário para a solução de um problema coletivo?

Seria interessante se fizéssemos esse esforcinho na hora de compartilhar alguma coisa.
Agora mais ainda...

AC/DC

então, naqueles dias, os ânimos andavam tão exaltados que uns pegaram em armas contra os outros.
a falta de dinheiro, a fome, a doença, o frio que se aproximava..., as famílias trancafiadas em suas casas, assombradas por mitos e medos, presas a um simulacro digital altamente manipulável. 

o jogo de war se movimentando.
o futuro terrível prestes a acontecer.
e nós, brasileiros, levando a vaca para o brejo,
nos aproximando rapidamente do colapso.
vendo num aliado, um inimigo.

a escassez, o acirramento da disputa linguística no facebook.
a fome, a falta de alimentos nos mercados,
pessoas morrendo

era triste viver isso. mais ainda quando se pensava nas crianças.


e olha, depois de tudo o que passou, lá na frente, quem sobrou percebeu que fomos nós os responsáveis por isto.
não foi ele.

seja luz

eu não queria dizer isto
mas pense bem
esses podem ser seus últimos dias de vida
esses podem ser nossos últimos dias no planeta
o fim de uma espécie
a natureza evoluindo e trazendo de novo seu equilíbrio
recomeçando
e daí, como você vai terminar seus dias?
quais serão suas últimas atitudes?
já temos algumas pistas...
mas ainda dá tempo de você mudar
e fazer algo diferente
seja luz

poesia da quarentena

nossa! estou no bagaço.
não sei se é pelo coronavírus
ou pelo duelo infindável dos batedores de panela na janela
que agora deram para medir quem pode mais. justo agora que não podem sair de casa
sintomático
parecem os cachorros presos nas coleiras

ou pela disputa ideológica entre o vassalo fidelíssimo do rei
e o inimigo até a morte do mesmo
que não se cansam de se digladiarem na arena pública (hologramática) do facebook

suas fontes: o whatsapp, o próprio facebook
fontes invencíveis em se tratando da velocidade de propagação da informação
especialmente da informação falsa
que carrega uma grande vontade de que aquilo que se compartilha, pela força do compartilhamento, é
tem que ser!
uma mistura de idade média com futurismo

nunca estivemos tão próximos do ocaso
e agora o tempo passa a passar rápido demais
me sinto, enquanto espécie, naquela civilização que não deixou vestígio
tamanha a desgraça de seu fim

amém

agora e na hora de nossa morte
amém

domingo, 5 de maio de 2019

uma coisa é certa
agora habemus dinastia 
togada
plebeia da mais 
baixa categoria

terça-feira, 17 de maio de 2016

el condor pasa

Tem horas que o tempo se faz notar. Reparar a vida e seu passar, o ciclo das gerações. Quando me lembro do que eu imaginava aos quinze anos para minha vida aos trinta, vejo que consegui chegar perto do que sonhei. Hoje, ouvindo alguém falar sobre a vida, os sonhos de garoto, percebi que desde aquela época eu queria ser o herói de mim mesma. Não queria ser o Jimmi Hendrix nem o Paul McCartney. Eu queria ser eu. 

magnetismo poluído

mesmer não contava com o lixo espacial!

horas

enquanto isso os ponteiros invisíveis do relógio digital passam sem parar!

ponto de vista

de qual buraco de fechadura você observa o mundo?

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Carta inédita de Cécile Volanges em suas Relações Perigosas

Carta ao Visconde de Valmont e à Marquesa de Merteuil 

Num mundo de segredos, a desconfiança é a rainha. 
Ressentida rainha, imagine você o rancor e a força de uma rainha ressentida! Ela odeia a todos que estão felizes, os que se divertem pelas ruas e experimentam a vida na leveza da pluma. Lembrem-se de Juno, Catarina II da Rússia, Vitória da Inglaterra. Lembrem-se de Marquesa de Merteuil. Todas amargas, vingativas, inescrupulosas. Levavam a ferro e fogo o respeito à certeza que tinham sobre o mundo. Pobre Io, transformada em novilha e vigiada por Argos, sentiu o sabor amargo da ressentida rainha da desconfiança. 

Pois, meus caros, esse reino não é lugar para minhas paragens. Tenho lugares mais tranquilos para viver, onde os segredos, por mais feios que pareçam, não precisam viver guardados, meticulosamente cuidados, vigiados. No reino que construo para morar, onde os segredos são leves a ponto de poderem ser conversados abertamente, eles não possuem máscaras para poder aparecer em público. Eles chegam à superfície com a tranquilidade da existência casual. Não com hora marcada. 

Nesse reino vivem duas pessoas e não há lugar para suas maquinações. Vocês podem achar meu reino “cristão” demais, virtuoso demais (“você é Justine”), irritantemente ético. E então se colocam no papel de corruptores disso que julgam “santo” demais. Imagino que vocês devam estar putos da cara por não conseguir gozar a corrupção dessa Clara dos Anjos que vocês julgavam estar no papo. Para piorar, ela desbancou suas teorias pessoais de prazer e dor. 

Agora, o que vocês vão fazer? Provavelmente mostrar, a fim de provar suas hipóteses, que você pode ser o maior vício, a encarnação da Juliete... e provar que estar do lado do vício é sempre mais prazeroso, onde mais se goza. sempre. mesmo na dor. Para você, um escândalo é uma glória. Eu já sei disso. Sei que você vai usar suas armas, se divertirá com isso, tentará impor a desconfiança em meu reino. O que posso dizer: que venha. Depois da tempestade vem a bonança. Eu sobreviverei e meu reino também. Estou conscientemente me preparando para esse inverno gelado, para mais esse pomo da discórdia que talvez caia sobre minha mesa e promova nova guerra em Troia. 

Vossa nem humilde nem obediente serva, Cécile Volanges. 
Brasil, em 12 de dezembro de 20**.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

quarta-feira, 25 de março de 2015

saudoso dilema

tenho saudades que me silenciam.
receio matar-lhes.
sentirei eu saudades das saudades?
acho que sim.

sábado, 4 de outubro de 2014

ideias sobre a evacuação da terra

boi, boi, boi
boi da cara preta,
pega essa menina que tem medo de careta...
boi, boi, boi
 
vivemos a síndrome da terra vazia:
medo da necessária evacuação do planeta.
  
boi, boi, boi
boi da cara preta,
pega essa menina que tem medo de careta...
boi, boi, boi

da conversa de ontem_sobre o filósofo e o mundo

Será que só será possível criar uma obra filosófica na solidão?
Alguém me disse há algum tempo que cada um é um.
Mas quem escreve é mesmo um?
Quantas filosofias imaginadas, quantas linhas decifradas,
quantas conversas dialogadas para que um texto se torne um.
Será que será possível afirmar que uma obra filosófica só pode ser criada na solidão?

quarta-feira, 14 de maio de 2014

um ano de rosa


porque minha flor de maio é uma rosa!

terça-feira, 13 de maio de 2014

ideias analfabetas

justo agora as ideias somem e as palavras silenciam
os grandes romances me ocorrem justamente quando estou a entregar rosa nos braços de morpheus
momento impróprio para escrever, porém muito criativo
o que sucedeu é que minhas ideias brigaram com as palavras
e quando quero escrevê-las, ficam mudas
 
 

nos tempos idos

faltava-me um espelho. a dimensão da minha existência física, aparente. o olhar nos meus próprios olhos, o encontro comigo mesma. o encontro que quase não existe... vejo sempre o outro... na rua, no bar, nas redes sociais virtuais... é sempre o outro, é sempre o mundo. e o universo que fica do lado de dentro do meu corpo vai passando como observador... observador do mundo... e esquecendo de refletir-se.
 
e olhando no espelho escuto a voz debochada de caetano veloso dizendo: you don't know me at all..., there's nothing you can show me from behind the wall.
 
é preciso procurar por detrás dos olhos do espelho. procurar ressonância na vida. a pergunta não é 'quem sou eu'?, a pergunta é 'onde estou'? é matéria, é um corpo que ocupa lugar no espaço, é um ser que emite calor. é um corpo que carrega outro. é preciso dizer que esta experiência é tão singular que não cabe dentro das palavras. azar dos outros... quem sente sou eu... para isso não é preciso espelho. não é preciso nada. apenas sentir o movimento alheio nas paredes internas de minha pele, da pele da minha barriga. um ser feito de nós dois, um ser que é outro. outro espírito, outro coração, outros sentidos... vindo do cosmos para habitar nossa casa, ocupar toda nossa vida. viver.

 

a mágica dos números

quando 1 + 1 = 3
quando 2 = 1
quando 1 = 0
 
há lógica nos números reprodutivos!

domingo, 23 de fevereiro de 2014

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

quinta-feira, 25 de julho de 2013

do silêncio

silêncio. a criança dorme ao som de a vida em seus métodos diz calma

com calma retomo o tempo das palavras..., o tempo criativo das palavras. 

o tempo do silêncio é fértil, lá é que são gestadas as palavras. 

elas chegam silenciosas. observam. 

começam a fazer uns grunhidos, espontâneos sons corporais. 

imitam o modelo e, depois, nascem. 

criativa palavra 

cria-ativa palavra! 

palavra

 

 

quinta-feira, 28 de março de 2013

água iluminada

                                                                 paraguaçu paulista

quarta-feira, 27 de março de 2013

ser ou não ser?



 
há os que confundem autor e obra. 
ok, há casos em que a obra traz marcas personificadas do autor.
há casos.

ainda assim, é bom lembrar esse trecho do nietzsche,

“[...] o melhor é certamente separar o artista da obra, a ponto de não tomá-lo tão seriamente como a obra. afinal, ele é apenas a precondição para a obra, o útero, o chão, o esterco e adubo no qual e do qual ela cresce — e assim, na maioria dos casos algo que é preciso esquecer, querendo-se desfrutar a obra mesma.”

pois o  artista não é o que representa. “[...] um homero não teria criado um aquiles, um goethe não teria criado um fausto, se homero tivesse sido um aquiles, e goethe um fausto.”

mas, há casos ainda mais exdrúxulos...
existem aqueles que se confundem com autor e/ou obra!
transtorno de personalidade?
vontade de ser outro?
ou falta de talento?

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

estereótipos historiográficos

A necessidade de revirar papéis antigos tem suas vantagens. Encontrei, nessa ocasião, um textinho pitoresco sobre temas históricos. Reproduzo-o aqui:

Numa certa noite
os estereótipos historiográficos 
invadiram minha casa.
Ao acordar encontrei
Carlota Joaquina limpando suas botas
no tapete da minha sala.
Entrei na cozinha e me deparei
com o marechal Deodoro que de
cima de seu cavalo me perguntava
onde é que estava o ministro da Guerra,
pois ele estava louco para demiti-lo.
Balancei minha cabeça, 
esfreguei meus olhos e
fui tomar um ar lá no quintal.
Para minha grande surpresa
encontrei Getúlio Vargas
fazendo uma fogueirinha
com as fotografias apreendidas
na redação do Estadão.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

preparativos para as viagens historiográficas

Quando viajo de trem, gosto de observar a paisagem que vai passando. Ou seria melhor dizer que gosto de observar a paisagem que vai ficando, pois quem passa é o trem, sou eu, que ocupo um lugar em um de seus vagões, é o tempo. Tempo para observar a paisagem. Corre o trem, pairam os pensamentos. Conforme o trajeto é percorrido o ambiente muda e os elementos de minha observação se transformam: outros tipos de árvores, variados grupos de pássaros, rios de diversos tamanhos e profundidade, plantações, variação climática, do solo. Ao recepcionar com os meus sentidos toda essa diversidade do mundo que vai passando, percebo, também com os meus sentidos, que em mim algo se metamorfoseia e, assim como Teleco, o coelhinho de Murilo Rubião, encarno o mito grego de Proteu, com a diferença que de dentro do trem não posso prever o futuro. Nem mesmo consertar o passado.
*
A viagem como metáfora para descrever o percurso de uma pesquisa é bastante apropriada, pois tanto a primeira quanto a segunda apresentam três variantes constantes: o tempo, a distância e a vivência. Quando uma pessoa faz uma viagem, ela percorre um determinado trajeto durante um determinado tempo. Isso também acontece com uma pesquisa. Para começar o trabalho, o pesquisador escolhe o local de onde dará início a sua viagem, ou seja, elabora a sua questão primordial, seleciona seu ponto de partida. Assim ele faz, porém, diferentemente do viajante, sem sequer imaginar onde e quando chegará ao seu destino. Conforme trilha os caminhos da pesquisa, o historiador presencia também a transformação que vai se operando nos elementos da paisagem.
No caso de uma investigação historiográfica, os elementos da paisagem são metáforas para as fontes históricas. Cada livro, cada filme, cada imagem, enfim, cada objeto cultural que chega às mãos do pesquisador e passa por sua leitura interage com ele, modifica-o e, além disso, torna-se mais um elemento que forma o percurso da pesquisa, mais um estímulo na composição de sua vivência. Em cada caminho, uma árvore, em cada fonte, uma referência ao passado. A imagem que o viajante vê da janela do trem é fugidia, assim também é provisória a verdade linguística a respeito do passado a que chega o historiador. Se a viagem é uma metáfora para a pesquisa e os elementos da paisagem para as fontes, o trem é uma metáfora para a vida. O viajante está onde está o trem, portanto, ele só pode ver aquilo que passa, a cada momento, por sua janela. Ele não vê mais o que passou nem vê ainda o que virá. No entanto, pode lembrar-se do que viu e imaginar o que chegará. Assim também ocorre com o historiador que, inserido em seu tempo presente, não pode decifrar o passado nem prever o futuro. Entretanto, pode se ocupar das memórias do que já foi e vislumbrar, com sua imaginação histórica, tanto um (passado) quanto outro (futuro).
O historiador está onde está a vida, do presente não pode escapar. Basta-lhe, por isso, escancarar sua janela para o instante e, inspirado e guiado por uma experiência artística de vida, elaborar uma descrição autêntica sobre o passado a partir de sua imaginação histórica. Porque a verdade da história, disse sabiamente o greco-moderno Johann Goethe, não passa de uma “verdade subjetiva”. Por criar o mundo de acordo com sua própria ideia, o historiador-artista poderá “[...] representá-lo perfeita e completamente”, não precisará se ocupar em “[...] construir o seu mundo de tal forma que caibam todos os fragmentos que a história nos transmitiu [...]”, pois tal narrativa objetiva não passará de um heróico esforço de pesquisa, compilação, emenda e cola de acontecimentos. (GOETHE apud WERNET, 1980: p. 148-9)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

mineirando os textos de meu avô

com a licença dos meus primos célio e george,
protagonistas da história a seguir,
publico uma poesia bastante espirituosa
da pena de célio r. siqueira.

uma pena ela não estar datada, 
mas os referidos primos
talvez possam dar algumas dicas:





para facilitar a leitura de quem não se entede
com manuscritos antigos,
transcrevo o texto:

"Conversa Ociosa"
Célio R. Siqueira

Primeiro de janeiro, final de almoço familiar no Restaurante La Mama, num canto da cidade, junto à Galdino. Do grupo, bem alimentado, destacava-se a loquacidade dos netos varões, filhos da filha mais velha. O lugar e o momento são propícios a um papo inconsequente. Alguma coisa ali me traz à lembrança uns versos de Olegário Mariano:

"Num remanso bucólico e sombrio
Onde atenua a marcha a grande rio,
À sombra de recursos ingazeiras, 
Batem roupa, contando, as lavadeiras.
Trago ainda nos olhos, é bem ela, 
A paisagem do Poço da Panela."

Naquela hora, as árvores sonolentas do Parque Dona Cota, indiferentes à pachorra indolente da Avenida curtindo um feriado universal, me induzem a aceitar o desafio que me fazem os dois promissores rebentos que se oferecem a cooperar na aventura. E foi assim que se fez, numa mesa de restaurante, a irreverência que aí vai e que resolvi chamar de 

"Conversa quase ociosa"

E se eu me for este ano, 
Não se iluda, foi engano.
Só tresloucado insano
Apaga o pernambucano.

E se neste ano eu me for
E não atender ao doutor
Que insiste para eu ficar:
"Com pouco vai melhorar."

E se eu me for nesses dias, 
Quem vai revirar o escritório,
Se Ela, com suas manias, 
Fez dele seu território?

E se eu me for de uma vez,
Quem se alegrará ao ouvir
A saudação tão cortês
E livre do bem-te-vi?

Quem vai caminhar na Galdino?
Quem ouvirá o Altemar?
Quem com cara de menino 
Vai querer me perguntar
Se banzai vem de banzar,
Não vem, banzar é pensar,
Banzai, escutai meus manos,
Quer dizer: "Dez mil anos",
Um desejo sem mais danos.

— Quem vai dormir assistindo
Ao Jornal Nacional?

E se este ano eu me for,
Quem suspenderá o labor
Para ouvir embevecido
Algum sabiá desvalido?

Mas haverá, com certeza,
Quem sorverá com presteza
O uisque que não bebi,
A Brama que não sorvi.

E então, sem prolegômeno,
Mais parecendo um fenômeno
Eu me for de vez prá lá,
Quem, como eu, vai esperar
"El dia que me quieras"
Que o Iglésias vai cantar?

Mas se os Skanks eu ouvir
E me puser a repetir
Os versos de meu agrado,
Olhando d'Ela o seu jeito
De ir, de vir, de ficar
Desisto do meu projeto
Prefiro continuar.
E canto a plenos pulmões,
Aos povos e às nações:

"Te ver e não te querer,
É improvável, é impossível...
Te ver e ter de esquecer
É improvável, dor incrível..."
ETC...

domingo, 5 de agosto de 2012

altura relativa

a beleza das árvores de espécies diferentes
e a insignificância da espécie humana!
*
quantos deles seriam necessários para que,
juntos,
chegassem à altura da araucária?
*

quinta-feira, 21 de junho de 2012

de Manuel Bandeira

Céu
 
“A criança olha
Para o céu azul.
Levanta a mãozinha,
Quer tocar o céu.
Não sente a criança
Que o céu é ilusão:
Crê que o não alcança,
Quando o tem na mão.”

quinta-feira, 24 de maio de 2012

londrina no calçadão

h2o na flor

a fuga da rima

justo hoje, no dia em que eu queria escrever uma poesia, a rima fugiu de casa.
saiu cedo, disse que voltava logo, mas ainda não apareceu.
vai ver encontrou algum trovador que com sua lira cantava os mistérios do amor,
quem sabe esbarrou numa guria que encantada com as cores vivas do dia 
dizia poesias em forma de bolhas de sabão,
pode ser ainda que tenha se cansado de sentimentalismos 
e aproveitado o domingo para encher a cara num bar qualquer.
eu permaneço aqui, espero ansiosa pela sua volta, o retorno da minha inspiração.
enquanto isso, vou jogando palavras no papel.
aleatoriamente. quem sabe de repente o vento muda a direção e traz de volta as 
rimas da poesia que justo hoje eu queria escrever.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

A Bela Alma dos “Anos de aprendizado de Wilhelm Meister”: uma narrativa mimética

Preâmbulo

O texto a seguir é uma narrativa histórico-ficcional intitulada Exercício Narrativo: Confissões de uma bela alma. Explico. “Confissões de uma Bela Alma” é o subtítulo do Livro VI do clássico romance de formação de Johann Wolfgang von Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Essas confissões, apesar de apresentadas em meio ao texto ficcional, foram escritas por uma pessoa que de fato existiu. Susanna Katharina von Klettenberg era parente e amiga da família de Goethe, seus escritos foram reunidos e publicados em 1912 sob o título A bela alma: confissões, escritos e cartas de Susanna Katharina von Klettenberg1. O texto apresentado por Goethe é, assim, baseado nessas confissões, uma versão romanceada das reflexões pietistas de Susanna e das conversas que porventura ele teve com ela. Conta-se que durante um período de sua vida, na época em que se encontrava em Frankfurt curando-se de uma tuberculose, Susanna foi-lhe uma importante interlocutora. O trabalho historiográfico que ora apresento, por sua vez, procura manter tal caráter romanceado. De que maneira? Por meio de suposições imaginativas baseadas em fontes históricas que vão se somando ao texto de Goethe. Apresento, ao longo do texto, uma série de fontes que localizam o cenário histórico em que viveu Susanna e procuro aproximar tal cenário do possível imaginário da confessora. Para diferenciar minhas falas dos trechos literais de Goethe utilizo aspas sempre que recorro à citação, além de inserir o respectivo número de página. O travessão (—), além disso, indica mudança de voz narrativa.

Exercício Narrativo: Confissões de uma bela alma

— Bela2 era bela. À sua maneira, mas era. Lembro-me do dia em que se deu conta disso. O desentendimento de Narciso3 com o capitão, seu vizinho, resultara em ferimentos graves nas costas e na cabeça de seu amigo. Ela, aflita com a quantidade de sangue que jorrava dele, não sabia o que fazer. Precisava de ajuda, mas tinha medo de abandoná-lo só. Aguardara alguns minutos até que a filha do dono da casa aparecesse para perguntar se estava tudo bem. 

— Na realidade, disse Bela, sua vinda não me acalmou muito. Já estava bêbada e “ria-se às gargalhadas daquele absurdo espetáculo e daquela maldita comédia. Roguei-lhe insistentemente que mandasse chamar um cirurgião, mas, obedecendo à sua selvagem natureza, desceu correndo as escadas para ir ela mesma à procura de um.” (p. 356).

— Algum tempo depois chegou o médico. Bela foi convidada pela dona da casa para que a acompanhasse até seu quarto de dormir, onde poderia se limpar e trocar suas roupas. O quarto era pequeno, cheirava a sândalo, tinha uma atmosfera morna. Em frente à porta, um espelho. A dona da casa trouxe-lhe toalha, bacia com água e roupa limpa. De repente viu-se sozinha no cômodo mais íntimo da casa de pessoas desconhecidas4. Limpou o sangue de seu rosto e dos braços, tirou suas vestes, limpou seu corpo. Nesse momento, mirou-se casualmente no espelho. De repente, era como se nunca tivesse existido, como se estivesse vendo seu corpo pela primeira vez. Como se aquele corpo refletido no espelho fosse de outra pessoa, o corpo de uma mulher, um belo corpo de mulher5

— Sim, pensou, “mesmo sem vestes posso me considerar bonita.” (p. 357).

— Para mim, Bela era muito mais bela sem vestes. Ficava ainda mais natural. Mas, não me encantei por ela apenas por sua beleza aparente, mesmo porque essa não era a maneira como ela mais gostava de ser notada. A imagem preferida que fazia de si era a do caracol que se recolhe à sua concha. Para encantar seu mundo, Bela não lançava mão de sua beleza, mas de seu pensamento.
Foram poucas as vezes que olhou seu corpo, assim..., como naquele dia. Talvez tivesse vergonha de si, talvez receio de desejar-se, quem sabe até medo de que alguém a pudesse ver. Tratava-o como a um santuário delicado e valioso, guardava-o vigilante, impedindo-o de ser profanado. Desde cedo, porém, mostrou-se dona de um organismo extremamente frágil. Aos oito anos, foi acometida de uma moléstia grave nos pulmões. A tuberculose, que na época nem era chamada por esse nome, altamente contagiosa, não tinha remédio. O repouso e o isolamento social devido à doença se tornaram parte do cotidiano de muitas pessoas em várias regiões da Europa. Outras tantas foram parar em leitos de hospitais e sanatórios e milhares foram vítimas fatais. Bela passou nove meses guardando repouso. Durante esse tempo, como não podia fazer atividades físicas, se ocupava brincando com bonecas e decifrando livros ilustrados. Também ouvia histórias: sua mãe costumava lançar mão da pedagogia bíblica, sua tia se encarregava das histórias de amor e dos contos de fada e seu pai apresentava-lhe, de maneira bastante envolvente, a história natural. Era dono de um agradável gabinete onde realizava inventários botânicos: dissecava plantas e insetos, fazia análises anatômicas de tecidos e órgãos animais e vegetais. Nessas ocasiões, ele passava horas explicando-lhe detalhadamente os experimentos e jamais se incomodava em responder às suas perguntas. Bela se encantava com a sabedoria do pai, admirava-o profundamente e respeitava-o com todo o seu amor. Com ele aprendeu a valorizar o conhecimento científico e a organizar seu pensamento lógico.

— A terrível e dolorosa experiência da enfermidade trouxe-me um mundo até então pouco conhecido. Descobri o mundo das palavras. Encantei-me por ele. Nesse momento, “pareceu-me haver-se implantado o alicerce de todo meu modo de pensar, ao mesmo tempo em que se ofereciam a meu espírito os primeiros expedientes para que se desenvolvesse a seu próprio modo.” (p. 347). Passei a nutrir intenso amor pelas leituras bíblicas e grande interesse pelo conhecimento. Além disso, “me imaginava em belos trajes indo ao encontro dos mais adoráveis príncipes, que não haviam de ter paz nem sossego enquanto não descobrissem a origem daquela bela desconhecida.” (p. 348).

— Quando estava com cerca de doze anos fez seus primeiros amigos fora de seu ambiente familiar. Uma vez, ao participar de uma apresentação promovida pelo professor de dança, conheceu os filhos de um marquês da corte que despertaram seu interesse. Eles se tornaram amigos e acabaram enamorando-se. Bela ficou preocupada, pensava que não podia continuar aquele tipo de relacionamento. Teria que escolher um deles. A decisão era difícil e ocupou por muitos dias o pensamento de nossa amiga. Enquanto isso, o mais velho deles adoeceu e, coincidência ou não, Bela acabou optando por ele. A enfermidade os aproximou. Como ela já havia se adoentado outras tantas vezes, sabia como proceder com uma pessoa enferma. Contava-lhe histórias, distraia-o com leituras, enviava-lhe presentes e doces. Envolvia-se cada vez mais com ele e, então, começou a dar pistas de sua paixão. Durante as aulas de francês, nos momentos em que o professor lhe pedia para praticar a escrita, Bela compunha poemas e cartas endereçadas ao garoto, derretia-se. Seu tutor, percebendo a situação, julgou ser adequado chamar-lhe a atenção para os perigos da paixão. Disse-lhe para ficar atenta e não cair em tentação. Ela odiava essas conversas, não achava que devia se abrir com ele, principalmente porque percebia seu preconceito em relação às mulheres, julgava-as frágeis e facilmente enganáveis. Irritava-a ser comparada com tais mulheres, julgava-se muito diferente.

— Minhas paixões, costumava dizer, “tinham sobre mim o efeito de me fazer silenciosa e me retrair das alegrias delirantes. Vivia solitária e comovida, e voltei a pensar em Deus.” (p. 352).

— A paixão por Damon, o filho mais velho do marquês, não permaneceu por muito tempo. Meses depois ele acabou morrendo, bem como seu irmão. No entanto, as inúmeras exortações do professor de francês ganharam espaço em seu coração, pois ela começou a achar que talvez ele tivesse razão.
Por aquela época, a corte estava em polvorosa. O príncipe herdeiro, que comemorava suas bodas, estava na região. Viera também assumir o trono, pois o rei havia morrido. Bela, que na ocasião fora apresentada à corte, ficou deslumbrada. Havia apresentações de teatro, de música, bailes e caçadas. Ela se divertia muito, participava das festas, dos saraus, dançava nos bailes, conhecia os rapazes e as moças de locais distantes. Em meio a toda essa sociabilidade, acreditou ter encontrado a chance para provar ao tutor que nem todas as mulheres eram frágeis e fracas de espírito, que ela, ao menos, não era, e que podia muito bem resistir às tentações do corpo. Não se deixaria ser alvo das flechas zombeteiras daqueles cortesãos belos, ricos e bem vestidos, porém, libertinos e repulsivos que empreendiam conversas dispensáveis e inúteis, que podiam, achava, fazer mal não só à sua virtude, como também à sua saúde. Fez um pacto consigo mesma: jurou que nunca se relacionaria intimamente com qualquer homem até que fosse chegada a hora e, assim, provaria ser forte, sincera e honesta. Guardaria seu santuário intocado até o casamento. Não deixaria que a considerassem uma mulher fraca.
Pobre Bela, não percebeu jamais a relação entre essa atitude ascética e a debilidade crônica de seu corpo. Mesmo canalizando suas energias sexuais e dando vazão à parte delas nos planos religioso e intelectual, a falta de fluidez física de suas paixões envenenou seu corpo. Bela envenenou-se aos poucos.
E foi então que veio Narciso, o belo e presunçoso Narciso. E em Bela encontrou Eco. E ela já não era aquela menina sonhadora da época em que a tia lhe contava fábulas de príncipes encantados. Na realidade, chegava a ficar levemente surpreendida com as investidas dos rapazes, especialmente de um Narciso, cuja beleza encantava jovens da Grécia inteira e as belas ninfas por ele se apaixonavam.

— “Num grande baile, ao qual também ele compareceu, dançamos juntos um minueto, mas tudo se passou sem que tivéssemos estreitado nossa amizade. Quando começaram as danças mais animadas, que eu procurava evitar em atenção ao meu pai, preocupado com minha saúde, dirigi-me a um dos cômodos contíguos onde me pus a conversar com amigas mais velhas, que estavam jogando.” (p. 354).

— E pensava, radiante:

— Ele preferiu ficar comigo e conversar a dançar e se divertir com as demais! Oh! Como estou feliz. Como sou feliz!

— Às vezes, e durante esses dias muitas vezes, ela esboçava um leve sorriso em frente ao espelho. Era o máximo de energia sensual que fluía pelo seu corpo. Em uma ocasião, porém, Bela quase experimentou novas sensações. No entanto, recuou a tempo.
Passara a manhã na biblioteca do pai pesquisando a respeito do sistema reprodutor humano. Reparara que muito se falava a respeito do aparelho genital masculino, porém, em relação ao feminino, quase nada se dizia. Os gregos Hierófilo e Sorano de Éfeso haviam sido responsáveis pelos trabalhos mais importantes sobre a anatomia feminina, mas, ora vejam, isso no século IV a.C.! Falópio estudou e descreveu os órgãos genitais femininos e fez a primeira laqueadura da história, porém, em meados do século XVI! Bela percebera também que muitos autores contemporâneos seus diziam que o aparelho genital feminino era “quase” como o do homem, porém, invertido para alguns, inacabado para outros. Ela entendia que homens e mulheres eram diferentes, sentia essa diferença em suas relações e não duvidava disso...

— Homens e mulheres foram feitos assim porque assim Deus desejou.

— No entanto, não acreditava que o estudo do aparelho reprodutor masculino daria conta de explicar o seu..., e revoltava-se com a desonestidade dos cientistas que a respeito da natureza feminina apresentavam hipóteses como se fossem verdades.

— Os homens da ciência costumam dar sustentação aos seus diagnósticos e leis baseando-se na análise clínica e anatômica, no entanto, no caso feminino, os médicos costumam ter como suporte apenas a análise anatômica de defuntos e uma série de analogias com o corpo masculino. Como pretendem entender a vida observando a morte, como pretendem entender a mulher analisando o homem?

— Estava, então, decidida. Experimentaria sentir seus órgãos genitais a fim de conhecê-los melhor. Tinha muito interesse pela história natural para se dar ao direito de ter esse pudor. Naquele dia, na hora do banho, passou o ferrolho na porta do lavatório. Despiu-se em frente ao espelho e, só depois de ficar completamente nua, procurou ver-se. Por muito pouco não desistiu.

— Mas..., e a ciência, o conhecimento...

— Continuou olhando-se no espelho, prendeu seus cabelos, lavou bem suas mãos e, por alguns segundos, não sabia o que fazer. Respirou fundo. Colocou as mãos na parte lateral das coxas, escorregou-as para frente até se encontrarem sobre os pêlos pubianos. Com a mão direita, tentou abrir caminho para a mão esquerda encontrar o túnel por onde saem os filhos e por onde, diziam, as mulheres davam extremo prazer aos homens. Lembrou-se da conversa que tivera na noite anterior com as amigas do jogo. Algumas das mulheres afirmaram que sentiam extremo prazer quando faziam sexo. Outras, mais resignadas, disseram que às vezes sentiam prazer e até gostavam quando o marido dava um beijinho, mas isso, alguém disse, foi mais no começo do casamento, depois, só por obrigação mesmo. Entretanto, os relatos que deixaram Bela mais impressionada foram daquelas mulheres que juraram nunca, nunca ter gostado de sexo. ‘Se não tivesse que ter filhos, disse uma senhora, não faria’. Na ocasião, Bela perguntou se o esposo não ficava zangado com ela? ‘Claro que não, meu bem, ele tem tantas outras possibilidades de prazer sexual. Porque teria que querer fazer sexo comigo? Sou apenas sua esposa’.
Mas voltemos à Bela, pelada no banheiro. Agora suas mãos passeavam superficialmente sobre sua vulva. Parou bruscamente, ouvia vozes no corredor. Era sua mãe. Procurou ficar em silêncio, mas estava ofegante. Minutos depois, percebeu que ela já havia se retirado. Olhou para o espelho, suas mãos tremiam. Ela pensava: tenho de conseguir, como poderei ser uma pessoa culta, conhecedora do corpo humano e da história natural se não conheço meu próprio corpo? Olhou para o lado, resolveu sentar-se na poltrona. Com a mão esquerda, segurou o espelho de mão, posicionou-o em frente ao seu joelho, abriu as pernas e, com a mão direita, examinou-se, viu a entrada do túnel, os grandes lábios, o que deveria ser a região descrita por Falópio, o tal clitóris...

— Se bem que meus lábios são tão pequenos.

— Terminado o exame ficou muito contente com a utilidade do espelho. Percebera que enquanto se examinava sem ver sentia sensações esquisitas, calores repentinos... A visão a guiara. Concentrada no espelho, na imagem refletida, pôde observar-se, conhecer-se melhor sem correr o risco de pecar.
Coincidência ou não, naquela tarde, Bela e suas irmãs tinham aula de francês. A atividade sugerida pelo professor era que elas realizassem individualmente a tradução de alguns trechos de Les Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne6, tecessem breves comentários a respeito daquelas regras e, por fim, comentasse oralmente suas conclusões. A parte sob responsabilidade de Bela dizia o seguinte:

Faz parte do decoro e do pudor cobrir as partes do corpo, com exceção da cabeça e das mãos. Deve-se tomar cuidado para não tocar com as mãos nuas qualquer parte do corpo que não é habitualmente deixada descoberta. E se for obrigado a assim proceder, isto deve ser feito com grande cautela. Você precisa acostumar-se ao sofrimento e ao desconforto sem se contorcer, esfregar-se ou coçar-se...
É muito mais contrário à decência e à propriedade tocar ou ver em outra pessoa, principalmente do sexo oposto, aquilo que os Céus proíbem que você olhe em si mesmo. [...]
Não é nunca correto referir-se a partes do corpo que devem ficar cobertas nem de certas necessidades corporais a que a Natureza nos sujeitou, nem mesmo mencioná-las7.

Por certo Bela enrubesceu, mas ninguém notou. Ela terminara a tradução primeiro que as outras, pois era muito hábil no francês, e enquanto isso pensou no que iria falar. Tinha receio de entregar-se, não podia vacilar. Ao reler sua tradução, contudo, encontrou as respostas necessárias. Na hora do debate, Bela leu o texto nas duas línguas e teceu seus comentários:

— Considero apropriada a discussão que traz esse texto a respeito do pudor em relação ao corpo. Por certo devemos ter cautela. Nessa manhã, enquanto pesquisava sobre o sistema reprodutor em uma das enciclopédias de meu pai, entendi a utilidade dos espelhos para o auto-exame físico. Quando a necessidade nos pedir para que toquemos nosso corpo, creio que a utilização do espelho como instrumento-guia é imprescindível. A visão nos guia por um caminho objetivo e não nos abandona à mercê da correnteza táctil. Creio que de todas as sensações, a visão seja a mais objetiva. O fato de ela revelar nossos corpos objetivamente inibe nossa imaginação e nos possibilita conhecer nossa anatomia sem hesitação.

— Fez-se um silêncio constrangedor.

— Perdão, querido mestre, exaltei-me. Mas compreenda. Aqui diz o seguinte: “Não é nunca correto referir-se a partes do corpo que devem ficar cobertas nem de certas necessidades corporais a que a Natureza nos sujeitou, nem mesmo mencioná-las”. Preocupa-me a possibilidade de todo esse pudor dificultar o trabalho científico no que diz respeito ao desvendamento dos mistérios do corpo humano, especialmente do corpo feminino. A medicina precisa se desenvolver. A medicina do corpo feminino também. Para isso é necessário que os homens da ciência conheçam esse corpo. Caro mestre, em minha casa, o senhor bem sabe, há um laboratório de anatomia onde meu pai estuda partes do corpo humano, disseca animais e plantas. Andei pensando que não é possível conhecer a vida do animal, da planta ou do ser humano se eles já estão mortos!

— Novamente Bela se alongou demais. Quando percebeu, já era tarde. O tutor achou melhor dispensar as alunas e acabou não respondendo aos seus comentários. Sentiu-se bastante aliviada, pois pensou que poderia ter se comprometido ainda mais caso tivesse que contra-argumentar os comentários do professor.
Mas... e Narciso. Pois bem, ele havia chegado à cidade na época em que a corte ainda estava lá. Era francês, muito inteligente e bem relacionado. Com facilidade aproximou-se dos homens ilustres da sociedade local e, em pouco tempo, frequentava a casa de Bela. Ele se dava bem com todos, especialmente com sua irmã mais nova, que era muito graciosa, porém, já estava comprometida com outro rapaz e via-se na obrigação de repeli-lo. Narciso, então, se aproximou de Bela. Eles conversavam sobre todos os assuntos.

— O rapaz, disse, “sempre estivera presente na melhor sociedade, além de sua especialização em história e política, que omitia por completo, possuía um vastíssimo conhecimento literário, e não havia novidade que lhe fosse desconhecida, sobretudo o que quer que ocorresse na França”. (p. 355).

— Que oportunidade fabulosa, pensava Bela. Narciso, Nárkissos, a beleza que entorpece. Gostava de conversar com ele porque ele não censurava seus devaneios filosóficos, seus planos secretos para consertar o mundo, sua maneira de explicar a alma humana. Podia falar, narcotizar-se com as palavras.

— “Trazia-me e enviava-me muitos livros atraentes, mas este era um assunto que deveríamos manter em segredo, mais do que se fosse uma proibida relação amorosa”. (p. 355). Que sociedade hipócrita, pensava, pois se uma relação amorosa pode ser muito mais maléfica para meu espírito e para meu corpo do que uma relação intelectual!

— Nessas horas lembrava-se do juramento que havia feito: mostrar em vida que a fraqueza de caráter não é da natureza da mulher. Nem todas as mulheres são susceptíveis à lábia dissimulada dos libertinos franceses. Ela, por certo, não era. E Bela começava a nutrir em sua alma um imenso desejo de subversão social individual. Não imaginava uma subversão feminina total, nem julgava isso conveniente. Nem todas as mulheres deveriam mesmo ter acesso a certos níveis de discussão, nem todos os assuntos deveriam ser da competência delas, certas hierarquias não deveriam ser quebradas. Em todos esses aspectos, Bela colocava-se tranquilamente como uma mulher. Não queria igualdade. Deus não os fez iguais, querer igualdade seria contrariar a natureza. Bela não queria contrariar a natureza. Ela queria liberdade de pensamento. As Sagradas Escrituras amparavam seus argumentos: ‘A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão.’8

 
— A Bíblia, dizia Bela, não diz que a mulher não deve aprender, mas, se ela o desejar, deve fazê-lo em silêncio, na intimidade do lar, em segredo, para não envergonhar tantos homens incultos que frequentam a sociedade. (p. 355).

— E o acaso agiu. E o desenrolar daquele fatídico episódio envolvendo Narciso e o capitão teve grande influência na vida sentimental de Bela. Narciso se comovera com a atitude de Bela junto a ele no leito de uma casa estranha. Percebera que seria uma esposa ideal. Instruída, fiel e bela. Em conversa com seu pai, Narciso se comprometera em pedir sua mão em casamento. Todavia, ela teve de esperar por quatro anos até que o pedido fosse feito. Durante esse tempo, imaginou as histórias mais felizes e românticas que poderia viver com seu amado, avivou na lembrança as histórias e contos de fada que sua tia contara e esperou por seu príncipe. Esperou por quatro longos anos. Nesse meio tempo, um turbilhão de emoções passou por ela. Bem que sua mãe aconselhara: “não se deve confiar demais naquilo que se diz num primeiro impulso.” (p. 358). Mas ela pouco pôde fazer para conter a esperança. A esperança a envenenou. Carcomeu seu coração.

— Voltei a lembrar-me de mim. “Minha alma recomeçou a se agitar; só a relação interrompida com o amigo invisível é que não foi assim tão fácil de restabelecer. Continuávamos sempre a uma certa distância; havia ali algo de novo entre nós, só que muito diferente do que era então.” (p. 358-9).

— Interessante é que sempre que Bela se voltava para si, voltava-se aos poucos também para seu amigo invisível. Dessa vez, porém, a reconciliação com ele foi mais lenta, no mesmo passo em que se dava seu distanciamento afetivo de Narciso. A paixão aplacara-se, simplesmente. Na primavera, ele viera fazer seu pedido. Prometera que assim que obtivesse uma posição honrosa e bem retribuída voltaria para levá-la com ele. (p. 359). Por conveniência, Bela disse que conversaria a respeito do assunto com seu pai e então daria uma resposta, contudo, ninguém duvidava quanto à sua aceitação. E o que para muitas mulheres seria o calvário, para ela foi o tempo necessário para que percebesse quão nociva para sua alma seria o casamento. Nos últimos anos de vida, Bela costumava falar que a época do noivado com Narciso foi para ela a comprovação de que “a ideia do matrimônio, sem dúvida, tem sempre algo de assustador para uma jovem medianamente esclarecida.” (p. 358).

— “Se existisse alguém que pudesse transformar em noivos os apaixonados de todas as jovens sensatas, esta seria uma grande obra a favor de nosso sexo, mesmo que dessas relações não resultasse casamento.” (p. 360).

— Pois, para Bela, além da experiência do noivado antecipar algumas vivências desgastantes da relação matrimonial, possibilitou-lhe sentir que o “natural” nesse tipo de relação era a transformação da mulher em uma serviçal do marido, ao passo que, para os demais, seria como uma “bonequinha enfeitada”. (p. 360).

— Para as mulheres fracas, por certo, o noivado é um inferno. Mas, para as fortes, um argumento: ‘sendo assim, preferimos não nos casar!’ Se a jovem tiver a “sorte de ter um noivo inteligente, poderá aprender com o noivado mais do que lhe poderiam ensinar universidades e países estranhos”. (p. 360). É parte do período de formação de uma jovem e “impõe sem demora a submissão tão necessária e conveniente ao sexo feminino; o noivo não domina como o marido; ele pede simplesmente, e sua amada busca adivinhar o que ele deseja, para realizá-lo antes mesmo que lhe peça.” (p. 360).

— Esses dois anos de noivado foram o deserto para Bela. Mas ela não percebia. Por conta da convicção de que o sexo deveria ser reservado ao casamento, e firme em sua promessa feita na época das aulas de francês, não percebia que seu ideal de vida envenenava-a. E envenenava também sua relação com Narciso. Ela sentia-se satisfeita com seus impulsos e emoções lendo livros, escrevendo poesias religiosas e conversando com o rapaz. Narciso sempre respeitou sua decisão e jamais tentou persuadi-la.

— “Só que, no tocante aos limites de virtude e da moral, éramos de opinião completamente diversa. Eu queria estar segura e não lhe permitia absolutamente nenhuma liberdade da qual o mundo inteiro não pudesse saber. Ele, habituado a guloseimas, achava rigorosa demais aquela dieta.” (p. 361).

— Eles acabaram se afastando, e Bela reatou relações com Deus. Queixava-se do comportamento de Narciso, considerava-o egoísta e fraco, mas não se dava conta de que desejava e cobiçava exatamente aquilo que a angustiava. Será que tinha medo, pavor, horror das relações sexuais? Ou uma curiosidade louca?

— Às vezes imaginava ser tudo muito dolorido, o sangue escorrendo pelas minhas pernas. Mas, às vezes, imaginava ser como flutuar sobre as nuvens. Mas não pedia para Deus livrar-me da tentação. Eu pensava nisso como se fossem fábulas, não tinha vontade de experimentar. Só na hora certa. Tornei-me uma velha. Nos saraus ficava ao lado das senhoras, acompanhando jogos entediantes. Fechei-me. Deus e eu.

— Narciso não sabia das relações entre Zeus e Eco, pelo menos era o que Bela pensava.

— E coincidentemente “dava-me às vezes para ler escritos que combatiam com armas leves e pesadas tudo que tivesse alguma relação com o que poderíamos chamar de o invisível. Lia os livros porque vinham dele, mas, ao terminar, não sabia uma só palavra do que continham”. (p. 362).

— Tinham suas diferenças quanto às ciências e aos conhecimentos. Narciso também gostava de zombar da formação feminina e julgava apropriado que a mulher mantivesse seus conhecimentos ocultos.
Mas, Bela..., Bela.

— “De uma forma inteiramente natural, cuidava de não me mostrar ante o mundo mais inteligente e mais instruída que de hábito.” (p. 363).

— Resignada, continuava à espera do casamento. A cada tentativa mal-sucedida de Narciso em conseguir um cargo na corte seu espírito se agitava, sofria, mas logo conformava-se à situação, como a areia se conforma ao recipiente em que é colocada e a água ao pote em que é despejada. Fechada em si, não se interessava por assuntos da casa, não conversava muito, afastou-se das irmãs.
Nessa época em que vivenciava um completo isolamento moral e social o rei estava na cidade com a corte. Barões, condes e marqueses do reino reunidos. Festas, musicais e teatros animavam a cidade. Bela e Narciso foram convidados para as festividades, o que significava uma ótima oportunidade para encontrar homens influentes. O conde, como bom anfitrião, iniciou o jantar saudando o príncipe e sua honrosa corte, bem como fazendo menção aos membros da intelligentsia burguesa que se encontravam presentes. Dedicou um brinde especial à jovem Bela, autora de uma excelente dissertação a respeito da virtude feminina. Tal manuscrito lhe chegara às mãos por obra de terceiros.

— Pois a senhorita, por ser uma pessoa extremamente consciente de suas limitações, sabe ocupar com grande dignidade o lugar que lhe é reservado na sociedade e não desejava sobrepor sua opinião à natureza. Muita sorte terá o jovem que se casar com tão nobre dama. Um brinde à virtude feminina.

— “Minha dissertação havia agradado o conde e tive de lhe enviar também alguns cantos, que eu havia composto recentemente.” (p. 363).

— Naquela noite, Bela sonhou que estava num baile de gala com Narciso: eles dançaram alguns minuetos, mas, assim que as músicas mais animadas começaram a tocar, Bela se sentiu cansada e convidou o rapaz para acompanhá-la até uma das salas contíguas, onde as pessoas mais velhas jogavam e onde poderiam descansar. Nessa hora, Narciso segurou com força seu braço e, aos berros, disse-lhe que não achava justo viver tantos anos como um celibatário, que sua vida virara um inferno depois que se tornara noivo, que ele passara a sentir culpa pelos desejos que ele tinha, pelas sensações que fluíam pelo seu corpo. Dizia que já havia tentado reprimi-las, contê-las, mas nada funcionava, ele continuava desejando, imaginando. ‘Já há tantos anos estamos ligados por laços de compromisso, Bela, e você ainda não confia em mim!’ Bela olhava para todos os lados, as pessoas da festa tinham parado de dançar e olhavam boquiabertas para o casal. Ela tremia, Narciso estava pálido. Ela começou a chorar e a implorar para que ele soltasse seu braço. De repente, acordou. Estava em prantos, suas lágrimas corriam por suas faces rosadas e virginais. Sentia-se friamente repelida por Narciso, mas ardia em paixão. Depois disso, procurou evitar os eventos sociais e foi se isolando, se fechando em uma imensa solidão sem fim.
De repente, eis que Bela sai de dentro de sua concha com uma resposta. Havia pensado, escrito, examinado e concluído: encontrara o sentido da correnteza de sua alma e, agora, já não podia mais desfrutar das alegrias sensuais da juventude. Devia seguir seu destino. Entregar-se a Deus.

— Reuni a família e disse-lhes “haver-me sacrificado o suficiente até então, estando disposta a ir ainda mais longe, até o final de minha vida, e compartilhar com Narciso todas as adversidades, exigindo, em troca, a plena liberdade de meus atos; declarava-lhes que meus atos e feitos não haveriam de depender senão de minha convicção.” (p. 367). Escrevi para Narciso colocando minha condição. Ele não aceitou, nós nos separamos.

— Bela libertou-se de muitas angústias, sentia-se aliviada e olhava aquela perda pelo lado positivo. Estreitou relações com a família do conde e deixou de esconder sua inclinação pelas artes e ciências. O que mais chamava a atenção das pessoas era o fato de uma jovem tão bela e bem relacionada socialmente ter preferido a companhia de Deus ao noivo. Mas era assim que Bela atingia seu fim e cumpria sua promessa de menina. 
Algum tempo depois chegou à sua casa um cunhado de seu pai. Um sujeito inteligente, rico e bem apessoado, porém, sem herdeiros. Sua mulher e seu filho haviam falecido e, agora, preocupava-se em promover a formação integral daqueles que viriam a ser detentores de sua fortuna: Bela, suas irmãs e os respectivos maridos. Durante esse tempo o tio se ocupou em programar o futuro das sobrinhas. Ao ser informado dos planos autênticos de Bela, sentiu-se inclinado em conhecê-la e, a partir de então, tornou-se para ela um importante referencial intelectual, mesmo não sendo entusiasta de seu ideal de vida. A visita do tio transformou o cotidiano da família. A irmã ainda não se sentia pronta para o casamento e, para ganhar tempo e formar-se melhor, acabou se tornando dama de honra numa corte vizinha. Bela, por sua vez, tornou-se uma canonisa. Seu tio arranjou-lhe um título da ordem pietista e ela alcançou um prestígio social bastante elevado. Fez seu voto de castidade e obediência e pôs-se a viver essa vida. Nas cortes que visitava, era sempre muito respeitada por isso. Na ocasião da viagem de sua irmã para a corte vizinha, por exemplo, Bela fora muito bem tratada pelos cortesãos e chegou a se divertir com sua imagem de diaconisa e o que ela representava para o mundo. (p. 372).

— “Deixava que me penteassem com toda a calma durante um par de horas, enfeitava-me e não pensava em outra coisa senão que, em minha situação, eu devia mesmo é vestir essa libré de gala. Nos salões repletos eu falava com todos e com cada um, sem que nenhuma figura ou caráter me deixassem uma forte impressão.” (p. 373). Mas toda essa licenciosidade não poderia durar e, ao voltar para casa, adoeci. Tive uma forte hemorragia que, mesmo não durando por muito tempo, debilitou demais meu corpo. Apesar de muito fraca, me alegrava em saber que minha trajetória era conduzida exclusivamente por Deus e, convencida de que jamais haveria de “encontrar aqui o que é justo, me sentia no estado mais alegre e mais sereno, enquanto, havendo renunciado à vida, nela era mantida.” (p. 373).

— Nos meses seguintes, seus pais também adoeceram. Cinco anos depois, sua mãe morreu. Apesar de todas essas desgraças, Bela sentia-se reconciliada e em comunhão com Deus. Os sinais da presença de seu amigo invisível em sua vida davam-lhe a certeza de sua salvação e, por isso, ela podia repousar em paz, sem preocupar-se em conformar sua alma às fórmulas de salvação expressas em sistemas de conversão e regras de comportamento. Contudo, não queria perder o vínculo com a comunidade e, sendo assim, seguia o sistema de conversão do líder pietista August Hermann Francke. Esse método de fé e prática consistia em três momentos distintos e essenciais para o desenvolvimento espiritual pietista: horror ao pecado, intensa contrição e iluminação interior. Somente esse percurso introspectivo, escrevera Francke, poderia servir de caminho para Deus. Para Bela, esse sistema era um pouco descabido. O horror ao pecado, por exemplo, ela não compreendia.

— Nunca senti o pecado corroendo minha vida, não sabia qual era o sabor prévio do inferno, nunca merecera castigos divinos. “Por nenhum momento acometeu-me o pavor do inferno; mesmo a ideia de um espírito maligno e de um local de castigo e tormento depois da morte nunca pôde encontrar lugar no círculo de minhas ideias.” (p. 375).

— E assim, sua vida seguia seu curso. As pessoas da sua família e seus amigos suspeitavam de sua lucidez, pensavam que ela estava levando tudo muito a sério, que deveria pensar um pouco no futuro, em sua saúde. Ela resolveu, então, deixar de ouvir a opinião alheia no tocante às coisas do espírito e fechou-se mais um pouco em sua concha de caracol. Nas resoluções práticas de sua vida, também deixou-se isolar.
Lá se foram, então, dez anos de sua vida. Até que novamente o acaso se manifestou. Ela conhecera Philo, um senhor interessante e que vivia de acordo quanto à sua organização doméstica e seus hábitos pessoais. Tornaram-se amigos e, com o passar do tempo, indispensáveis um ao outro. Nesse meio tempo, porém, surpresas lhe aconteceram. Philo acabou por envolvê-la em uma crise espiritual que tomou grandes proporções. Ela sentiu a força dos anos de abstinência... Descobriu, assustada, que podia pecar. A realidade do pecado a circundou e, pela primeira vez, temeu estar muito próxima do erro, do mal. De repente percebeu que a moral superava sua natureza.

— Clamei a Deus para “libertar-me daquela enfermidade e da predisposição à enfermidade, estando segura de que o grande Médico não haveria de recusar-me seu socorro.” (p. 379).

— E então, pela primeira vez em sua vida, soube o que era a fé.

(Hebreus 11:1-3: A fé é a certeza das coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem. Pela fé, os antigos obtiveram bom testemunho. Pela fé entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir de coisas que não aparecem.)

Nesse momento, Bela entendeu que somente o sangue de Jesus Cristo poderia purificá-la de todo o pecado. O cordeiro de Deus apenas surgiu em seu horizonte mental depois da realidade do pecado pesar em sua alma. Antes, ela identificava-se completamente com Deus, não havia o sentimento do erro, o gosto do mal, a predisposição para a falta. Sua alma era divina. Jesus Cristo só entrou em sua vida no momento em que foi expulsa do paraíso. Mas, foi também nesse momento que ela percebeu que, se sua natureza não estava em harmonia com a “natureza cristã”, não era falta de sua natureza, mas a prova de que aquela “natureza cristã” não era natural, era moral. Entendeu que tudo o que até agora ela havia tratado como natural, não passava de uma imposição cultural. Que havia sido um erro acreditar que “a história natural do gênero humano” era uma lição bíblica. (p. 350). Bela apenas se identificou com Jesus quando sua pretensa natureza divina tornou-se humana. Antes do gosto do pecado nunca lhe acometera a dúvida de seu lugar ao céu, agora, acreditar nele era uma questão de fé: Deus haveria de salvá-la. Agora que ela precisava de salvação, precisava também de Jesus.

— “Um impulso transportava minha alma para a cruz onde Jesus um dia morreu; um impulso, não posso chamá-lo de outro modo, em tudo semelhante àquele que conduz nossa alma para junto de um amado ausente, um aproximar-se, provavelmente muito mais essencial e verdadeiro do que supomos. Assim se aproximava minha alma Daquele que se fez homem e que morreu na cruz, e nesse instante eu soube o que era a fé.” (p. 381).

— Por essa época, Bela teve acesso aos escritos do conde Zinzendorf e travou relação com os irmãos da comunidade dos hernutos. Parecia-lhe que a regra ética desses crentes estava mais de acordo com sua experiência de vida do que o sistema de conversão de Francke. Ela estava exausta dos sermões e dos pregadores pietistas e a atenção dada ao conde aos elementos emocionais e ante-racionais da religião chamou-lhe mais a atenção, bem como os cânticos hernutos falaram-lhe mais ao coração. Em segredo, se tornou irmã da comunidade.
Por esses tempos, casou-se sua irmã. Seu tio, como anfitrião, preparou uma bela estadia para os hóspedes. Era um castelo pequeno, porém bem instalado. O bom gosto do tio encantara-a. Obras de arte magníficas: estátuas, mosaicos, pinturas..., “o espírito de uma cultura superior, ainda que somente material.” (p. 389). Admirava a forma, a delicadeza, a sensibilidades com que os gregos se expressaram em sua arte. No entanto, pensava, eram pagãos, e isso impunha a eles uma condição: a de ser uma cultura superior, porém, pecadora. Durante a estadia no castelo Bela conversou muito com o tio. Ele era crítico às suas decisões e escolhas, embora pensasse que o homem deveria tentar assenhorear-se das circunstâncias que regem seu destino e, nesse sentido, não podia censurar a sobrinha por ela ter escolhido assenhorear-se da sua natureza conjugando-a com Deus e a moral cristã. Era dono de uma habilidade comunicativa muito singela, argumentava sem ofender-lhe. Conversaram também sobre as qualidades e motivações do homem de ação, aquele que sabe de seu objetivo e caminha em direção a ele. Para seu tio, a possibilidade de escolha, de resolução e de perseverança era, no homem, admirável. Conversaram sobre arte e educação, sobre gênio e moralidade. Ao apreciar uma série selecionada pelo tio, Bela comentou que as imagens lhe sugeriam uma parábola da educação moral.

— Sim, ele disse, “daí constatamos que não está bem entregar-se à educação moral, solitário e ensimesmado; antes descobriremos que aquele cujo espírito anseia por uma formação moral tem todas as razões para educar ao mesmo tempo sua fina sensibilidade, a fim de não correr o risco de despencar do alto de sua moral, entregando-se às tentações de uma fantasia desregrada e chegando ao caso de desagradar sua natureza mais nobre mediante o prazer em brincadeiras insípidas, quando não em algo ainda pior.” (p. 393-4).

— Bela preferiu não dar a perceber que o tio se referira a ela, e assim, continuaram as conversas durante todos esses dias. Ela conheceu muitas pessoas interessantes, uma delas, um médico e naturalista que cuidava dos enfermos da corte e que, durante algumas épocas do ano, se deslocava pelas vilas rurais prestando auxílio aos párocos e demais necessitados dos povoados. Ele se aproximou de Bela, pois gostava da maneira como ela lidava com seus sentimentos religiosos. Acreditava que o seu caso poderia servir de inspiração às pessoas que, acometidas de um mal não totalmente recuperável, canalizassem suas energias para a experiência espiritual.
Passadas as festas, Bela retornou à sua casa, onde enfrentou novamente a dureza da sua vida mundana. Sua irmã mais nova morrera subitamente e, de susto, a casada abortara. Ela ficou novamente doente, acometendo-lhe uma tosse terrível e uma rouquidão tamanha que por dias não pôde falar com ninguém. Ao final desse período crítico, novamente o sol brilhou sobre Bela e seus familiares. Sua irmã deu a luz ao seu primeiro filho, Lothario. Meses depois, contudo, a saúde de seu pai piorou e ele morreu.

— Agora que estava sozinha em casa, via-se com muito tempo livre e podia recuperar o contato com os hernutos. Participava de encontros litúrgicos, refeições comunitárias, passeios e pequenas viagens de recreio. Nesse meio tempo, nasceu sua primeira sobrinha: Natalie e, no ano seguinte, a segunda, que mais tarde se tornaria uma condessa. Bela flutuava. Em algumas noites, enquanto sonhava ou enquanto não dormia, não sabia ao certo, chegava a ver seu corpo como um ser estranho, como se estivesse do alto a observá-lo sem que lhe pertencesse.

— “Eu devia guardar repouso em razão de minha saúde debilitada, e esse tipo de vida tranquilo assegurava muito bem ao meu equilíbrio; não temia a morte, chegando mesmo a desejá-la, mas sentia no íntimo que Deus me daria tempo de perscrutar minha alma e me aproximar cada vez mais Dele.” (p. 399).

— O médico, seu amigo, pedia-lhe para afastar tais sentimentos de sua alma, pois acreditava que eles poderiam agravar sua saúde. “Ser ativo – disse ele – é a primeira destinação do homem, e deve empregar todos os intervalos, durante os quais se vê obrigado a descansar, para adquirir um claro conhecimento das coisas exteriores que, mais tarde, facilitaria sua atividade.” (p. 400).

— Novamente sua irmã deu a luz e nasceu Friedrich. A criança já nasceu órfã de pai, que alguns meses antes do nascimento caíra do cavalo e falecera. Ela, ao dar a luz, foi como uma vela que se apaga na ventania repentina.

— As quatro crianças ficaram sob tutela de nosso tio, que confiou ao abade, seu amigo, sua educação. “A princípio, eu não podia entender o plano dessa educação, até que por fim mo revelou meu médico: meu tio havia-se deixado convencer pelo abade de que, ao se pretender fazer algo pela educação do homem, devia-se considerar para onde tendem suas inclinações e seus desejos. Em seguida, deve-se colocá-lo em condições de satisfazer aquelas logo que possível, de alcançar estes logo que possível, para que o homem, caso esteja equivocado, possa reconhecer bem cedo seu erro e, caso tenha encontrado o que lhe convém, agarrar-se a ele com mais zelo e com maior diligência continuar aperfeiçoando-se.” (p. 403).

— Bela notava as características de cada um dos sobrinhos e gostava de relacionar suas personalidades a dos antepassados da família para ver com quem eles se assemelhavam. Essa prática, compartilhada com o médico, era muito interessante. Vendo as fotografias antigas e relembrando as características pessoais dessas pessoas do passado, ela e o naturalista tentavam descrever-lhes o gênio. Lothario, o homem de ação, decidido, conquistador e justo. Natalie, a bela alma. A condessa, uma pessoa frágil, vaidosa e muito bela. Friedrich, nada. Nenhuma palavra.
Ela bem que gostaria de estar mais próxima dos sobrinhos, no entanto, por conta de sua debilidade física e pela maneira como o tio pensava a educação deles, mantinha-se afastada. Notava que seu tio temia que sua influência religiosa prejudicasse a formação dos jovens.

— “Mas o que não posso aprovar nesses educadores é o fato de procurarem afastar das crianças tudo o que poderia levá-las ao trato consigo mesmas e com o amigo invisível, único e fiel. Na prática, ninguém é tolerante! Pois mesmo aquele que afirma deixar a cada um seu próprio modo de ser, está sempre buscando excluir a intervenção daqueles que não pensam como ele.” (p. 403).

...

Assim acreditou e viveu Bela até os últimos dias de sua vida.

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Texto escrito em julho de 2010.
Pulicado na revista Rapsódia em setembro de 2013.

1 - Ver GOETHE, Johann Wolfgang von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Trad. Nicolino Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 347 (nota de rodapé 1).
É importante também apontar o caráter singular desse tipo de confissão produzida por Klettenberg. Segundo Wilma Maas em O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura, “[...] um dos mais importantes mecanismos de introspecção e de investigação psicológica que o mundo moderno conheceu é a literatura de conversão religiosa. Comuns na Alemanha luterana e pietista desde as primeiras décadas do século XVIII, os testemunhos de conversão e os apontamentos autobiográficos dos indivíduos “renovados” e “renascidos” descreviam a trajetória individual do crente desde sua vida pregressa até o momento da conversão mística ao pietismo. [...] A experiência pessoal relatada nessas autobiografias místicas tinha caráter exemplar e era difundida ao público, seja por meio de cartas, seja da publicação em livro. Embora não fosse propriamente literatura, o estilo pessoal e a preocupação do indivíduo com seu desenvolvimento espiritual configuraram o conceito religioso de formação que, secularizado, contribuiria para a fixação da forma do romance burguês na Alemanha. [...] A Bildung pietista prevê portanto um hermético isolamento em relação ao mundo, como forma de se trilhar o caminho que leva à graça divina.” (MAAS, Wilma Patricia. O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Edunesp, 2000, p. 73-4).
2 - Referência à personagem nomeada “Bela Alma” no romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister.
3 - Referência ao personagem goetheano chamado “Narcisse”.
4- “[...] O quarto é um aposento onde se encontra uma vasta cama de cortinados, localizado além da sala e separado desta por uma porta provida de fechadura e ferrolho.” Esse local fechado e separado da sala, cômodo onde acontecem todas as atividades pessoais e sociais dos membros das famílias, era acessado apenas por indivíduos selecionados. Era ali que se guardavam, nas casas burguesas, as tapeçarias, roupas e jóias, os livros, registros de contas e diários. “[...] Esta fronteira entre as coisas que dão prazer e são secretas e as atividades que se realizam na sala é típica da classe dos grandes mercadores no final de Idade Média.” RANUM, Orest. “Os refúgios da intimidade”. In: CHARTIER, Roger. História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. Trad. Denise Bottman e Bernardo Joffily. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 219-20.
5 - “Nas classes abastadas, o código de boas maneiras proibirá por muito tempo que uma moça se admire nua, mesmo que seja através dos reflexos de sua banheira. Há pós especiais com a missão de turvar a água do banho, de forma a prevenir tal vergonha. O estímulo erótico da imagem do corpo, exacerbado por semelhante proibição, frequenta esta sociedade que enche os bordéis de espelhos antes de pendurá-los, tardiamente, na porta do armário nupcial.” CORBIN, Alain. “O segredo do indivíduo”. PERROT, Michelle. In: História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. 4. Trad. Denise Bottman e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 423.
6 - ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol 1. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 103.
Les Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne (As regras da decência e da civilidade cristã), de La Salle, era um manual de comportamento baseado nos costumes da corte francesa destinados à disseminação de “[...] maneiras e modelos cortesãos por estratos mais amplos da burguesia [...]”. Esse tipo de literatura se espalhou por várias regiões da França no século XVIII, chegando até aos círculos burgueses alemães da época.
7 -  A versão de Les Règles que faço referência aqui é a do ano de 1729, pois era a que estava em vigência na época em que Susanna Katharina tinha aproximadamente 15 anos. A versão seguinte saiu no ano de 1774, o mesmo de seu falecimento. (Idem, p. 138).
8 - “A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. E não permito que a mulher ensine, nem que exerça autoridade sobre o marido; esteja, porém, em silêncio”. (I Timóteo, 2:11-12).

quem ouve? quem houve?

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